29.6.15

Lisboa, Santa Apolónia


A Câmara Municipal de Lisboa defende a ideia de acabar com o terminal da linha do Norte em Santa Apolónia, às portas da baixa lisboeta, transferindo-o para o extremo nordeste da cidade (estação do Oriente), ideia que na semana passada foi retomada pelo vereador Manuel Salgado.

A ideia não é nova no seio do executivo camarário que governa atualmente a cidade. Já tinha sido avançada em 2008 por António Costa, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Curiosamente, foi o próprio Manuel Salgado quem, ainda em 2008, afirmou que desativar a estação de Santa Apolónia não estava «nem pouco mais ou menos» nos planos da autarquia. Sete anos depois, Manuel Salgado vem defender o encerramento da estação, de forma a permitir um plano de urbanização que transforme o local num “espaço verde” que faça a ligação dos vales de Santo António e de Chelas ao rio Tejo. Acrescenta que «não faz sentido» ter a estação no centro da cidade, pois grande parte dos passageiros sai na estação do Oriente, e que a estação «com mais afluência» de Lisboa é Entrecampos.   

Num país que tanto tem maltratado a ferrovia, muitos autarcas tendem a olhar para o caminho-de-ferro como uma barreira dentro da cidade (esquecendo que, na realidade, as vantagens superam em muito os inconvenientes). Este tipo de posição está longe de ser novidade. Há 10 anos, Santana Lopes defendeu a ideia mirabolante de uma linha de Cascais entre Cascais e Algés (concelho de Oeiras), libertando a zona ribeirinha lisboeta entre Belém e Cais do Sodré do “estorvo” da linha férrea.

(Manuel Salgado parece ter retomado esta ideia, ao afirmar, relativamente à linha de Cascais: «Não concordaremos nem aceitaremos uma solução [de modernização da linha de Cascais] que signifique retirar à cidade de Lisboa a hipótese de serem devolvidos oito quilómetros de rio [zona ribeirinha] que estão a ser usados para a linha férrea». Por extraordinário que pareça, a Câmara Municipal de Lisboa parece estar a ponderar acabar com a linha de Cascais no seu percurso lisboeta; é a segunda linha urbana do país com mais passageiros!)

O jornal Público deu hoje vários outros exemplos de disparates que foram cometidos (ou tentados) pelo país fora, sempre com o mesmo denominador comum: a libertação do “empecilho” que é uma linha de caminho-de-ferro (para planos de urbanização que, muitas vezes, nunca se concretizam).
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A estação abandonada de Vila Real de Santo António, em plena cidade e junto ao terminal do transporte fluvial. O comboio fica agora a 2km de distância. A mudança prejudicou o transporte público e não trouxe nenhum benefício: a área que estava ocupada pela linha férrea está há muitos anos ao abandono.
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Que se defenda que os carros fiquem à porta das cidades, devendo a partir daí ser usado o transporte público para as deslocações citadinas, é uma coisa. Defender-se o mesmo para o comboio (transporte público) é, do ponto de vista da mobilidade, um erro. Defender-se o mesmo enquanto as nossas cidades continuam a estar feitas para os carros, é um contrassenso.

Que se considere a linha férrea uma barreira numa cidade onde se tem permitido a construção de autoestradas e vias rápidas, que constituem barreiras maiores e bem mais nocivas para a cidade, é revelador de como em Portugal se olha de maneira muito diferente para a ferrovia e para a rodovia, privilegiando-se esta e desvalorizando-se aquela.

É, de resto, sintomático que, neste caso lisboeta, quem se pronuncia sobre este assunto não é o vereador que tem o pelouro da mobilidade, mas Manuel Salgado, que tutela o urbanismo.

Mas vamos ao caso de Santa Apolónia. Santa Apolónia não é apenas uma estação de tomada e largada de passageiros; é um terminal ferroviário, cuja transferência para o Oriente (ou para Braço de Prata) seria impossível, por falta de espaço (não sendo necessário lembrar a falta de dinheiro para uma outra solução). Isto mesmo deixaram claro a CP e a REFER há sete anos, em resposta às declarações de António Costa em defesa da transferência do terminal ferroviário para o Oriente.

(hoje, o Público noticiou que, afinal, uma empresa subsidiária da REFER terá chegado a elaborar um projeto que «previa substituir a linha férrea por um metro de superfície até ao Oriente». Outro tique português: o novo-riquismo de gastar dinheiro a substituir uma infraestrutura já existente e a funcionar bem por uma outra com a mesma função e pior qualidade, nomeadamente em termos de tempo de trajeto. Aliás, estamos cansados de ouvir falar do abandono de linhas férreas para a construção de “metros de superfície”, em que depois a única coisa que se concretiza é a supressão da linha férrea, ficando o metro de superfície no papel: Trofa, Coimbra, etc.)  

Manuel Salgado tentou desvalorizar a importância da estação de Santa Apolónia, afirmando que a estação de Lisboa «com mais afluência» de passageiros é Entrecampos, mas a verdade é que Santa Apolónia tem mais movimento de passageiros do que Entrecampos. Santa Apolónia é, nada mais, nada menos do que a 3.ª estação mais importante de todo o país em movimento de passageiros (e em crescimento, depois da inauguração da ligação ao metro).

Todos os comboios que servem a estação de Santa Apolónia param também na estação do Oriente. Se, ainda assim, há milhares de passageiros que utilizam diariamente a estação de Santa Apolónia e não a do Oriente, a ponto de aquela ser a 3.ª estação mais movimentada do país, é porque, para esses passageiros, a estação de Santa Apolónia é mais vantajosa nas suas deslocações. E as contas não são difíceis de fazer. O comboio leva o passageiro do Oriente até às portas da baixa em 10 minutos (e sem necessidade de transbordos). Pela alternativa de transporte público mais rápida (o metro), o trajeto (incluindo os transbordos) pode facilmente aumentar para 40 ou 50 minutos. É uma grande diferença, sobretudo para as deslocações diárias entre casa e trabalho. Até para quem reside na envolvência da estação do Oriente, o comboio é uma excelente alternativa ao metro (o passe do metro e dos autocarros dá também para os comboios). O mesmo se diga para quem atualmente opta por deixar o carro à entrada da cidade, utilizando o comboio para chegar ao centro.

Pior: para muitos passageiros (os que só têm passe da CP), a alteração significaria passarem a pagar mais pelo mesmo trajeto de transporte público.

Lisboa, cidade na qual entram diariamente centenas de milhares de carros, dispensa soluções que piorem o serviço de transporte público, e que possam contribuir para levar mais pessoas a trocar o transporte público pelo carro.

Pelo contrário, Lisboa precisa de soluções firmes no sentido de retirar carros da cidade. Que libertem o imenso espaço público urbano ocupado estupidamente pelo automóvel. Quando se apostar forte e decisivamente em devolver às pessoas esse espaço público, elas precisarão cada vez menos de se deslocar a “espaços verdes” (os idealizados por Manuel Salgado para Santa Apolónia ou outros) para poderem gozar os seus tempos livres longe dos carros e do trânsito.

Num país em que se chega ao ponto de se admitir deixar de levar o comboio à 3.ª estação ferroviária mais movimentada do país, o que podemos esperar do futuro do transporte ferroviário em Portugal?

E o mais preocupante é que neste país nunca sabemos se este tipo de projetos, por mais estapafúrdios e despesistas que sejam, não irão mesmo concretizar-se. A morte recente da REFER vai ser seguramente uma preciosa ajuda.
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