A Câmara Municipal de Lisboa defende
a ideia de acabar com o terminal da linha do Norte em Santa Apolónia, às portas da baixa lisboeta, transferindo-o para o extremo nordeste da cidade (estação do
Oriente), ideia que na semana passada foi retomada pelo vereador Manuel
Salgado.
A ideia não é nova no seio do
executivo camarário que governa atualmente a cidade. Já tinha sido avançada em
2008 por António Costa, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Curiosamente, foi o próprio Manuel Salgado quem, ainda em 2008,
afirmou que desativar a estação de Santa Apolónia não estava «nem pouco mais ou
menos» nos planos da autarquia. Sete anos depois, Manuel Salgado vem defender o
encerramento da estação, de forma a permitir um plano de urbanização que
transforme o local num “espaço verde” que faça a ligação dos vales de Santo
António e de Chelas ao rio Tejo. Acrescenta que «não faz sentido» ter a estação
no centro da cidade, pois grande parte dos passageiros sai na estação do
Oriente, e que a estação «com mais afluência» de Lisboa é Entrecampos.
Num país que tanto tem maltratado
a ferrovia, muitos autarcas tendem a olhar para o caminho-de-ferro como uma
barreira dentro da cidade (esquecendo que, na realidade, as vantagens superam em
muito os inconvenientes). Este tipo de posição está longe de ser novidade. Há
10 anos, Santana Lopes defendeu a ideia mirabolante de uma linha de Cascais
entre Cascais e Algés (concelho de Oeiras), libertando a zona ribeirinha lisboeta
entre Belém e Cais do Sodré do “estorvo” da linha férrea.
(Manuel Salgado parece ter retomado esta ideia, ao afirmar, relativamente à linha de Cascais: «Não
concordaremos nem aceitaremos uma solução [de modernização da linha de Cascais] que
signifique retirar à cidade de Lisboa a hipótese de serem devolvidos oito
quilómetros de rio [zona ribeirinha] que estão a ser usados para a linha
férrea». Por extraordinário que pareça, a Câmara Municipal de Lisboa parece
estar a ponderar acabar com a linha de Cascais no seu percurso lisboeta; é a
segunda linha urbana do país com mais passageiros!)
O jornal Público deu hoje
vários outros exemplos de disparates que foram cometidos (ou tentados) pelo
país fora, sempre com o mesmo denominador comum: a libertação do “empecilho”
que é uma linha de caminho-de-ferro (para planos de urbanização que, muitas
vezes, nunca se concretizam).
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A estação abandonada de Vila Real de Santo
António, em plena cidade e junto ao terminal do transporte fluvial. O comboio
fica agora a 2km de distância. A mudança prejudicou o transporte público e não
trouxe nenhum benefício: a área que estava ocupada pela linha férrea está há
muitos anos ao abandono.
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Que se defenda que os carros
fiquem à porta das cidades, devendo a partir daí ser usado o transporte público
para as deslocações citadinas, é uma coisa. Defender-se o mesmo para o comboio
(transporte público) é, do ponto de vista da mobilidade, um erro. Defender-se o
mesmo enquanto as nossas cidades continuam a estar feitas para os carros, é um contrassenso.
Que se considere a linha férrea
uma barreira numa cidade onde se tem permitido a construção de autoestradas e
vias rápidas, que constituem barreiras maiores e bem mais nocivas para a cidade,
é revelador de como em Portugal se olha de maneira muito diferente para a ferrovia
e para a rodovia, privilegiando-se esta e desvalorizando-se aquela.
É, de resto, sintomático que,
neste caso lisboeta, quem se pronuncia sobre este assunto não é o vereador que
tem o pelouro da mobilidade, mas Manuel Salgado, que tutela o urbanismo.
Mas vamos ao caso de Santa Apolónia.
Santa Apolónia não é apenas uma estação de tomada e largada de passageiros; é
um terminal ferroviário, cuja transferência para o Oriente (ou para Braço de
Prata) seria impossível, por falta de espaço (não sendo necessário lembrar a
falta de dinheiro para uma outra solução). Isto mesmo deixaram claro a CP e a
REFER há sete anos, em resposta às declarações de António Costa em defesa da
transferência do terminal ferroviário para o Oriente.
(hoje, o Público noticiou que,
afinal, uma empresa subsidiária da REFER terá chegado a elaborar um projeto que
«previa substituir a linha férrea por um metro de superfície até ao Oriente». Outro
tique português: o novo-riquismo de gastar dinheiro a substituir uma infraestrutura
já existente e a funcionar bem por uma outra com a mesma função e pior
qualidade, nomeadamente em termos de tempo de trajeto. Aliás, estamos cansados
de ouvir falar do abandono de linhas férreas para a construção de “metros de
superfície”, em que depois a única coisa que se concretiza é a supressão da
linha férrea, ficando o metro de superfície no papel: Trofa, Coimbra, etc.)
Manuel Salgado tentou
desvalorizar a importância da estação de Santa Apolónia, afirmando que a
estação de Lisboa «com mais afluência» de passageiros é Entrecampos, mas a
verdade é que Santa Apolónia tem mais movimento de passageiros do que
Entrecampos. Santa Apolónia é, nada mais, nada menos do que a 3.ª estação mais
importante de todo o país em movimento de passageiros (e em crescimento, depois
da inauguração da ligação ao metro).
Todos os comboios que servem a
estação de Santa Apolónia param também na estação do Oriente. Se, ainda assim,
há milhares de passageiros que utilizam diariamente a estação de Santa Apolónia
e não a do Oriente, a ponto de aquela ser a 3.ª estação mais movimentada do
país, é porque, para esses passageiros, a estação de Santa Apolónia é mais
vantajosa nas suas deslocações. E as contas não são difíceis de fazer. O
comboio leva o passageiro do Oriente até às portas da baixa em 10
minutos (e sem necessidade de transbordos). Pela
alternativa de transporte público mais rápida (o metro), o trajeto (incluindo
os transbordos) pode facilmente aumentar para 40 ou 50 minutos. É uma grande
diferença, sobretudo para as deslocações diárias entre casa e trabalho. Até
para quem reside na envolvência da estação do Oriente, o comboio é uma
excelente alternativa ao metro (o passe do metro e dos autocarros dá também
para os comboios). O mesmo se diga para quem atualmente opta por deixar o carro
à entrada da cidade, utilizando o comboio para chegar ao centro.
Pior: para muitos passageiros
(os que só têm passe da CP), a alteração significaria passarem a pagar mais
pelo mesmo trajeto de transporte público.
Lisboa, cidade na qual entram
diariamente centenas de milhares de carros, dispensa soluções que piorem o
serviço de transporte público, e que possam contribuir para levar mais pessoas
a trocar o transporte público pelo carro.
Pelo contrário, Lisboa precisa
de soluções firmes no sentido de retirar carros da cidade. Que libertem o
imenso espaço público urbano ocupado estupidamente pelo automóvel. Quando se apostar
forte e decisivamente em devolver às pessoas esse espaço público, elas
precisarão cada vez menos de se deslocar a “espaços verdes” (os idealizados por
Manuel Salgado para Santa Apolónia ou outros) para poderem gozar os seus tempos
livres longe dos carros e do trânsito.
Num país em que se chega ao
ponto de se admitir deixar de levar o comboio à 3.ª estação ferroviária mais
movimentada do país, o que podemos esperar do futuro do transporte ferroviário
em Portugal?
E o mais preocupante é que
neste país nunca sabemos se este tipo de projetos, por mais estapafúrdios e
despesistas que sejam, não irão mesmo concretizar-se. A morte recente da REFER vai ser seguramente uma preciosa ajuda.
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