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Por se tratar de uma
localidade, o limite máximo de velocidade era de 50 km/h. No entanto, várias circunstâncias
impunham ao condutor uma velocidade mais reduzida, nomeadamente:
estava a conduzir numa via ladeada de edificações próximas da faixa de rodagem, incluindo um minimercado, e com gente
na rua; circulava numa zona de curva e contracurva e tinha passado por um sinal
de perigo avisando para uma sucessão de curvas perigosas; tinha passado por um
sinal de perigo alertando para a proximidade de uma passadeira (o atropelamento
ocorreu antes da passadeira); na faixa de rodagem havia marcas brancas
alertando os condutores para a necessidade de reduzirem a velocidade; e tinha
passado por um sinal de perigo alertando para o facto de se tratar de um local
frequentado por crianças.
Perante este sinal, o condutor tem de moderar significativamente a velocidade.
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O condutor viu a criança de 4
anos a saltitar junto à berma - quando o carro estava a cerca de 17 metros de distância -, circunstância que
lhe impunha uma redução imediata de velocidade. Mas à velocidade a que seguia foi tudo muito rápido: a 50 km/h, o carro desloca-se a 14 metros por
segundo, pelo que aqueles 17 metros foram percorridos em pouco mais de um
segundo. Cerca de um segundo é o tempo que normalmente um condutor demora a reagir.
O condutor nem chegou a travar; ainda desviou o carro para a esquerda, mas não
a tempo de evitar o atropelamento. O embate com a criança deu-se, pois, à
velocidade de 50 km/h. Se conduzisse a uma velocidade adequada (necessariamente
mais baixa), teria tido mais tempo para reagir e não teria havido atropelamento
ou, pelo menos, o impacto teria sido muito menor e a criança teria certamente
sobrevivido. Hoje estaria quase a fazer 7 anos.
O condutor foi condenado por homicídio negligente, numa multa de
1250 €. Mas o tribunal condenou ainda a avó da criança, também por homicídio
negligente (por omissão), numa multa de 1500 €, com fundamento em que, se
tivesse segurado a mão da criança, tê-la-ia impedido de invadir a faixa de
rodagem e teria, dessa forma, evitado o atropelamento.
Este caso é suscetível de
várias abordagens. Por exemplo, a complacência com que habitualmente a justiça
portuguesa trata os homicídios cometidos ao volante: sucedem-se os casos de
homicídio em que o condutor homicida é condenado numa multa de mil e poucos
euros.
Este caso revela também outro
clássico: do princípio ao fim do processo, o condutor não mostrou qualquer sinal
de arrependimento e recusou mesmo assumir a sua responsabilidade pelo desastre,
contra a prova feita e mesmo com recurso à mentira e à invocação de factos impossíveis
(existe um livro da ACA-M que aborda este fenómeno, intitulado “A
culpa não foi minha”, baseado num estudo académico).
(Estas duas realidades estão,
aliás, interligadas. Um condutor homicida, inequivocamente culpado (como foi o
caso), que não se mostra arrependido, nem assume a sua responsabilidade,
manifestamente não percebeu a enorme gravidade da sua conduta (em consequência da qual morreu um ser humano!!), pelo que uma multa de mil e tal euros é uma
pena inadequada. E, por seu turno, estas penas absurdas também ajudam a
cimentar a cultura de desresponsabilização vigente)
Particularmente interessante,
neste caso, é a condenação da avó pelo homicídio da neta. E o facto de ter sido
condenada numa pena mais grave do que aquela que foi aplicada ao condutor que,
nas circunstâncias descritas, atropelou a criança.
Houve recurso e a condenação da
avó não foi mantida: neste início de 2015, o Tribunal da Relação revogou nessa
parte a sentença do tribunal de primeira instância, absolvendo a avó da morte
da neta. Mesmo assim, o Ministério Público defendeu,
até ao fim do processo, a condenação da avó; o juiz da Relação relator do
processo decidiu o recurso com uma decisão sumária, pela qual manteve a
condenação da avó; e só na reclamação apresentada pela avó dessa decisão
sumária é que a pena foi revogada – e, mesmo assim, um dos três juízes autores da decisão final votou vencido, defendendo que a avó não só era responsável,
como era a principal responsável pela morte da neta, até porque o condutor do carro não circulava a mais de 50 km/h (!).
Tal como este juiz, o português médio tende a achar que
conduzir a 50 km/h dentro de uma localidade é conduzir devagar (não obstante essa ser a velocidade máxima!). Neste processo,
o condutor argumentou que não reduziu a velocidade quando viu a criança a
saltitar na berma porque já vinha “devagar”, ou seja, a 50 km/h; uma das
testemunhas disse também que o carro circulava “devagar”, isto é, a 50 km/h;
outra testemunha (a principal testemunha presencial) disse que o condutor não
ia depressa, nem devagar, circulava a não mais de 50 km/h. E, a um órgão de
comunicação social, a dona do minimercado opinou que o condutor circulava “com
pouca velocidade”, até porque, sendo uma zona de curvas, ali nem se pode andar
depressa.
Com esta
mentalidade (dominante), não admira que as ruas das nossas povoações se tenham tornado território perigoso para as crianças (tal como para os outros peões, idosos à cabeça).
Uma
pessoa que tenha uma criança à sua guarda tem, indubitavelmente, de observar
especiais deveres de cuidado. Mas, tal como concluiu o Tribunal da Relação, não
se pode exigir que sempre e em todas as circunstâncias uma criança tenha de
estar segura pela mão.
Acrescentaram
os juízes da Relação que quando a avó circulasse com a criança na berma da
estrada, aí sim, se impunha que a levasse pela mão.
Mas
podemos imaginar mil e uma situações em que isso se revela impossível.
Não é a questão da imputação de responsabilidades pela morte de uma criança atropelada que primacialmente interessa aqui discutir. O que nos deve preocupar em primeiro lugar é a criação de condições para evitar que a morte aconteça, reduzindo-se ao mínimo o risco de uma criança ser atropelada.
Não é a questão da imputação de responsabilidades pela morte de uma criança atropelada que primacialmente interessa aqui discutir. O que nos deve preocupar em primeiro lugar é a criação de condições para evitar que a morte aconteça, reduzindo-se ao mínimo o risco de uma criança ser atropelada.
Segurar
a criança pela mão não é solução universal, não sendo viável em inúmeras
situações. Exemplos:
E se eu
for a um supermercado com uma criança e trouxer vários sacos de compras nas
mãos e não a puder segurar pela mão?
E se em
vez de ir com sacos na mão eu estiver a andar de muletas?
E uma
mãe a andar na rua com três ou quatro filhos pequenos?
E se se tratar de um daqueles passeios estreitos - muito abundantes nas nossas povoações - onde as pessoas são obrigadas a andar em fila indiana?
E aquelas crianças a quem apelidam de “terroristas”, ou "desobedientes", indiferentes aos avisos de cuidado, e que quando menos se espera se soltam de quem as está a agarrar?
E se se tratar de um daqueles passeios estreitos - muito abundantes nas nossas povoações - onde as pessoas são obrigadas a andar em fila indiana?
E aquelas crianças a quem apelidam de “terroristas”, ou "desobedientes", indiferentes aos avisos de cuidado, e que quando menos se espera se soltam de quem as está a agarrar?
E um
grupo de crianças de jardim de infância em passeio numa rua, como tantas vezes
se vê, sem que seja possível agarrá-las a todas pela mão?
(Já nem falo da mera possibilidade de uma criança estar a brincar na rua. As crianças ainda podem brincar na rua... sem estarem de mão agarrada a um adulto...)
(Já nem falo da mera possibilidade de uma criança estar a brincar na rua. As crianças ainda podem brincar na rua... sem estarem de mão agarrada a um adulto...)
Não estando em causa um problema de educação ou de aviso (todas as crianças sabem que não devem ir para a faixa de rodagem), e uma vez que as crianças são e serão sempre, por natureza, irresponsáveis, imaturas, imprudentes, imprevisíveis, desatentas e com uma noção muito limitada das distâncias, da velocidade e do perigo, qual é
a solução?
Manter
as crianças "aprisionadas" em casa, sem as poder levar à rua?
Não
sendo qualquer destas soluções defensável, pergunta-se: o
atropelamento de crianças é uma espécie de inevitabilidade, algo a que tenhamos
de nos resignar, apenas para que os automobilistas possam circular um pouco
mais depressa dentro das nossas povoações? O interesse dos automobilistas em
circular um pouco mais rápido vale mais do que a vida humana?
É este
tipo de povoações desumanas que queremos continuar a ter?
Ou é
necessário acordarmos de vez e percebermos que temos de reduzir a
velocidade de circulação automóvel dentro das localidades?
Há
alguns anos, numa vila alentejana, eu circulava num passeio com uns amigos, que
levavam um filho pequeno, possivelmente com a idade desta criança que morreu
atropelada. De um momento para o outro, a criança abandonou os
pais e invadiu a faixa de rodagem, no momento em que vinha um carro. Valeu que se tratava de um condutor responsável, que
circulava a não mais de 30 km/h, e que conseguiu travar a tempo. Tudo não
passou de um susto. Mas se o carro circulasse a 50 km/h ou mais, hoje provavelmente aquela
criança não estaria viva...
(Este
artigo vai dedicado ao Afonso)
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(para
ler neste blogue, em breve: de como uma cidade que reduz o limite de velocidade para 30 km/h se torna uma cidade segura para as crianças)
Fonte (atropelamento relatado no texto): o acórdão do tribunal da relação (vi também fotografias do local e da zona do atropelamento).
Fonte (atropelamento relatado no texto): o acórdão do tribunal da relação (vi também fotografias do local e da zona do atropelamento).
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