31.3.15

As crianças pela trela?

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Uma manhã de março de 2012. Numa pacata povoação beirã, uma senhora de 80 anos foi ao minimercado com a sua neta de (quase) 4 anos. Depois das compras, avó e neta estavam a sair do minimercado. A criança transpôs a porta do estabelecimento, subiu a saltitar os dois degraus que separavam essa porta da berma da rua, continuou a saltitar na berma e, ainda a saltitar (não a correr), entrou não mais de 50 centímetros na faixa de rodagem, onde ficou a saltitar. Foi colhida por um carro a circular a 50 km/h, bateu com a cabeça no capô, foi projetada pelo ar e ainda rebolou no asfalto alguns metros antes de se imobilizar na berma. Transportada para o hospital de S. João no Porto, foi operada. Durante a cirurgia teve três paragens cardíacas. Depois de operada, manteve-se em estado de coma. Evoluiu para morte cerebral. Morreu três dias depois do desastre.

Por se tratar de uma localidade, o limite máximo de velocidade era de 50 km/h. No entanto, várias circunstâncias impunham ao condutor uma velocidade mais reduzida, nomeadamente: estava a conduzir numa via ladeada de edificações próximas da faixa de rodagem, incluindo um minimercado, e com gente na rua; circulava numa zona de curva e contracurva e tinha passado por um sinal de perigo avisando para uma sucessão de curvas perigosas; tinha passado por um sinal de perigo alertando para a proximidade de uma passadeira (o atropelamento ocorreu antes da passadeira); na faixa de rodagem havia marcas brancas alertando os condutores para a necessidade de reduzirem a velocidade; e tinha passado por um sinal de perigo alertando para o facto de se tratar de um local frequentado por crianças.
Perante este sinal, o condutor tem de moderar significativamente a velocidade.
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O condutor viu a criança de 4 anos a saltitar junto à berma - quando o carro estava a cerca de 17 metros de distância -, circunstância que lhe impunha uma redução imediata de velocidade. Mas à velocidade a que seguia foi tudo muito rápido: a 50 km/h, o carro desloca-se a 14 metros por segundo, pelo que aqueles 17 metros foram percorridos em pouco mais de um segundo. Cerca de um segundo é o tempo que normalmente um condutor demora a reagir. O condutor nem chegou a travar; ainda desviou o carro para a esquerda, mas não a tempo de evitar o atropelamento. O embate com a criança deu-se, pois, à velocidade de 50 km/h. Se conduzisse a uma velocidade adequada (necessariamente mais baixa), teria tido mais tempo para reagir e não teria havido atropelamento ou, pelo menos, o impacto teria sido muito menor e a criança teria certamente sobrevivido. Hoje estaria quase a fazer 7 anos.

O condutor foi condenado por homicídio negligente, numa multa de 1250 €. Mas o tribunal condenou ainda a avó da criança, também por homicídio negligente (por omissão), numa multa de 1500 €, com fundamento em que, se tivesse segurado a mão da criança, tê-la-ia impedido de invadir a faixa de rodagem e teria, dessa forma, evitado o atropelamento.

Este caso é suscetível de várias abordagens. Por exemplo, a complacência com que habitualmente a justiça portuguesa trata os homicídios cometidos ao volante: sucedem-se os casos de homicídio em que o condutor homicida é condenado numa multa de mil e poucos euros.

Este caso revela também outro clássico: do princípio ao fim do processo, o condutor não mostrou qualquer sinal de arrependimento e recusou mesmo assumir a sua responsabilidade pelo desastre, contra a prova feita e mesmo com recurso à mentira e à invocação de factos impossíveis (existe um livro da ACA-M que aborda este fenómeno, intitulado “A culpa não foi minha”, baseado num estudo académico).

(Estas duas realidades estão, aliás, interligadas. Um condutor homicida, inequivocamente culpado (como foi o caso), que não se mostra arrependido, nem assume a sua responsabilidade, manifestamente não percebeu a enorme gravidade da sua conduta (em consequência da qual morreu um ser humano!!), pelo que uma multa de mil e tal euros é uma pena inadequada. E, por seu turno, estas penas absurdas também ajudam a cimentar a cultura de desresponsabilização vigente)

Particularmente interessante, neste caso, é a condenação da avó pelo homicídio da neta. E o facto de ter sido condenada numa pena mais grave do que aquela que foi aplicada ao condutor que, nas circunstâncias descritas, atropelou a criança.

Houve recurso e a condenação da avó não foi mantida: neste início de 2015, o Tribunal da Relação revogou nessa parte a sentença do tribunal de primeira instância, absolvendo a avó da morte da neta. Mesmo assim, o Ministério Público defendeu, até ao fim do processo, a condenação da avó; o juiz da Relação relator do processo decidiu o recurso com uma decisão sumária, pela qual manteve a condenação da avó; e só na reclamação apresentada pela avó dessa decisão sumária é que a pena foi revogada – e, mesmo assim, um dos três juízes autores da decisão final votou vencido, defendendo que a avó não só era responsável, como era a principal responsável pela morte da neta, até porque o condutor do carro não circulava a mais de 50 km/h (!).    

Tal como este juiz, o português médio tende a achar que conduzir a 50 km/h dentro de uma localidade é conduzir devagar (não obstante essa ser a velocidade máxima!). Neste processo, o condutor argumentou que não reduziu a velocidade quando viu a criança a saltitar na berma porque já vinha “devagar”, ou seja, a 50 km/h; uma das testemunhas disse também que o carro circulava “devagar”, isto é, a 50 km/h; outra testemunha (a principal testemunha presencial) disse que o condutor não ia depressa, nem devagar, circulava a não mais de 50 km/h. E, a um órgão de comunicação social, a dona do minimercado opinou que o condutor circulava “com pouca velocidade”, até porque, sendo uma zona de curvas, ali nem se pode andar depressa.

Com esta mentalidade (dominante), não admira que as ruas das nossas povoações se tenham tornado território perigoso para as crianças (tal como para os outros peões, idosos à cabeça).

Uma pessoa que tenha uma criança à sua guarda tem, indubitavelmente, de observar especiais deveres de cuidado. Mas, tal como concluiu o Tribunal da Relação, não se pode exigir que sempre e em todas as circunstâncias uma criança tenha de estar segura pela mão.

Acrescentaram os juízes da Relação que quando a avó circulasse com a criança na berma da estrada, aí sim, se impunha que a levasse pela mão.

Mas podemos imaginar mil e uma situações em que isso se revela impossível.

Não é a questão da imputação de responsabilidades pela morte de uma criança atropelada que primacialmente interessa aqui discutir. O que nos deve preocupar em primeiro lugar é a criação de condições para evitar que a morte aconteça, reduzindo-se ao mínimo o risco de uma criança ser atropelada.

Segurar a criança pela mão não é solução universal, não sendo viável em inúmeras situações. Exemplos:
E se eu for a um supermercado com uma criança e trouxer vários sacos de compras nas mãos e não a puder segurar pela mão?
E se em vez de ir com sacos na mão eu estiver a andar de muletas?  
E uma mãe a andar na rua com três ou quatro filhos pequenos?
E se se tratar de um daqueles passeios estreitos - muito abundantes nas nossas povoações - onde as pessoas são obrigadas a andar em fila indiana? 
E aquelas crianças a quem apelidam de “terroristas”, ou "desobedientes", indiferentes aos avisos de cuidado, e que quando menos se espera se soltam de quem as está a agarrar?
E um grupo de crianças de jardim de infância em passeio numa rua, como tantas vezes se vê, sem que seja possível agarrá-las a todas pela mão?

(Já nem falo da mera possibilidade de uma criança estar a brincar na rua. As crianças ainda podem brincar na rua... sem estarem de mão agarrada a um adulto...) 

Não estando em causa um problema de educação ou de aviso (todas as crianças sabem que não devem ir para a faixa de rodagem), e uma vez que as crianças são e serão sempre, por natureza, irresponsáveis, imaturas, imprudentes, imprevisíveis, desatentas e com uma noção muito limitada das distâncias, da velocidade e do perigo, qual é a solução?

Manter as crianças "aprisionadas" em casa, sem as poder levar à rua?


A alternativa é levar as crianças por uma trela?

Não sendo qualquer destas soluções defensável, pergunta-se: o atropelamento de crianças é uma espécie de inevitabilidade, algo a que tenhamos de nos resignar, apenas para que os automobilistas possam circular um pouco mais depressa dentro das nossas povoações? O interesse dos automobilistas em circular um pouco mais rápido vale mais do que a vida humana?

É este tipo de povoações desumanas que queremos continuar a ter?

Ou é necessário acordarmos de vez e percebermos que temos de reduzir a velocidade de circulação automóvel dentro das localidades?

Há alguns anos, numa vila alentejana, eu circulava num passeio com uns amigos, que levavam um filho pequeno, possivelmente com a idade desta criança que morreu atropelada. De um momento para o outro, a criança abandonou os pais e invadiu a faixa de rodagem, no momento em que vinha um carro. Valeu que se tratava de um condutor responsável, que circulava a não mais de 30 km/h, e que conseguiu travar a tempo. Tudo não passou de um susto. Mas se o carro circulasse a 50 km/h ou mais, hoje provavelmente aquela criança não estaria viva...


(Este artigo vai dedicado ao Afonso)
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(para ler neste blogue, em breve: de como uma cidade que reduz o limite de velocidade para 30 km/h se torna uma cidade segura para as crianças)

Fonte (atropelamento relatado no texto): o acórdão do tribunal da relação (vi também fotografias do local e da zona do atropelamento). 
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