9 A fatura da sorte
Tenho por hábito pedir fatura.
Não gosto de pagar impostos pelos outros (os que não passam fatura/recibo e se
isentam de pagar os seus impostos). Não gosto de pagar impostos a
outros cidadãos (os que metem ao bolso o IVA que paguei – ex. refeição num
restaurante). E recuso ser cúmplice de um sistema mais injusto. A economia
subterrânea atinge níveis vergonhosos em Portugal (estamos tristemente no topo
da Europa), contribui fortemente para aumentar as desigualdades sociais e pedir
fatura é um dever de cidadania de que, no nosso interesse, individual e
coletivo, não deveríamos abdicar. Como não vivemos num mundo ideal, sou adepto
de medidas destinadas a incentivar os cidadãos a pedir fatura, mesmo tendo
consciência de que por essa via só se está a tentar combater a evasão fiscal em
pequenos e médios negócios, sem se atingir a grande evasão fiscal (que carece
de outro tipo de medidas). Mas esta “fatura da sorte”
concebida pelo Governo (sorteio de automóveis entre os contribuintes que pedirem
fatura com o seu NIF), além de ser de eficácia mais do que duvidosa nos médios
negócios (quem é que vai passar a pedir fatura e pagar, por exemplo, 300 ou 400
euros de IVA numa obra doméstica, só pela hipótese bastante improvável de a respetiva
fatura vir a ser sorteada?!), é a todos os títulos absurda. Por exemplo, sortear
automóveis ao mesmo tempo que se diz querer promover a mobilidade sustentável é
um contrassenso que o Governo jamais conseguirá explicar. Admitir sorteios de carros
a quem não tem carta de condução (o regulamento do sorteio não faz qualquer restrição) é um disparate em termos de segurança
rodoviária, e isto num país que continua a ter números preocupantes de condução
sem carta e, em geral, de sinistralidade rodoviária. Sortear automóveis de alta cilindrada, que é o que está em causa, não é apenas uma parolice de novo-rico; trata-se
de automóveis mais poluentes e que consomem mais, sendo inaceitável que o próprio Estado
incentive a sua utilização. E são carros de manutenção muito mais cara (desde o consumo de combustível às revisões, passando pelo seguro ou pelo imposto de circulação, são
um sorvedouro de dinheiro), pelo que são um autêntico presente envenenado para
o comum dos portugueses, que vivem com cada vez maiores dificuldades
financeiras. Isto vindo de um Governo que não se cansou de acusar os
portugueses de terem vivido acima das suas possibilidades, é obra!
Enquanto isto, em Fevereiro de
2014, uma simples queixa ao fisco feita por um cidadão que pagou um serviço mas
viu-lhe recusada a emissão da respetiva fatura é uma coisa “complicadíssima”: não, não se pode preencher um qualquer formulário na internet; não, não é possível por correio eletrónico; não, não basta telefonar para a Autoridade
Tributária. É preciso, pasme-se, ir pessoalmente à direção distrital de
finanças do domicílio do comerciante que recusou entregar a fatura/recibo relativa
à quantia recebida [Sim, sim, se, por exemplo, a fatura/recibo for recusada por um
comerciante de Bragança (ex. unidade de alojamento turístico), eu
teria de me deslocar a Bragança para fazer a respetiva queixa!] O que é isto
senão um incentivo à não emissão de fatura?...
10 A rifa do azar
«Chegámos ao cume da governação
rasca. Saiu-nos na rifa mesmo sem darmos o NIF. É preciso ter azar».
(a frase do mês, por José Vítor
Malheiros)
11 A frase mais estúpida
«Eu sei que a vida quotidiana
das pessoas não está melhor, mas não tenho dúvidas de que a do país está muito
melhor do que em 2011».
(por Luís Montenegro, líder parlamentar do PSD)
12 O país e as pessoas
A Autoridade para as Condições
do Trabalho (ACT) alertou para o facto de estarem a aumentar as situações de
trabalho clandestino, havendo cada vez mais trabalhadores não declarados (na
maioria, portugueses) a viver em «situações que andam na fronteira do trabalho
escravo», incluindo a falta de pagamento de salários. A Confederação Nacional
de Agricultura confirma.
E enquanto as situações de
trabalho clandestino e de falsos recibos verdes aumentam, o Inspetor-Geral da ACT
alertou para o facto de a ACT ter deixado de ter verbas essenciais para o
funcionamento da atividade de inspeção do trabalho em 2014, isto a acrescer ao
número insuficiente de inspetores.
13 A “preocupação” com a
natalidade
Os mesmos governantes que,
através do “convite” à emigração, dos cortes, do desemprego, do aumento de
impostos, da redução dos benefícios fiscais de quem tem filhos a cargo, da diminuição
dos salários, do agravamento das condições de trabalho, incluindo aumento do horário de trabalho, etc., etc., etc., têm contribuído
fortemente para a diminuição da natalidade em Portugal (que está no valor mais
baixo de sempre), anunciaram um “grupo de trabalho” (mais um…) para que em três
meses estude um plano de incentivo à natalidade.
Entretanto, num relatório
divulgado em Fevereiro, um comité de 18 peritos independentes das Nações Unidas
manifestou preocupação perante os «elevados níveis de privação entre as
crianças» portuguesas, a exposição das crianças ao «risco crescente de pobreza»
e as menores garantias de acesso aos cuidados de saúde, ao ensino e à proteção
social pelas crianças em Portugal, alertando ainda o Governo português para a
necessidade de travar novos cortes no setor da Educação.
14 O fim do estado de graça de
Assunção Esteves
Por fim, uma boa notícia: o fim
do estado de graça de Assunção Esteves. A comunicação social, que,
estranhamente, a tinha em muito boa conta, demorou muito tempo a perceber, mas
finalmente já toda a gente parece ter percebido que personagem temos como
segunda figura do Estado, e que, segundo consta, aspirava a candidatar-se à presidência
da república. Era o que nos faltava.
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