5.3.14

Portugal, Fevereiro de 2014 (II)

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9  A fatura da sorte
Tenho por hábito pedir fatura. Não gosto de pagar impostos pelos outros (os que não passam fatura/recibo e se isentam de pagar os seus impostos). Não gosto de pagar impostos a outros cidadãos (os que metem ao bolso o IVA que paguei – ex. refeição num restaurante). E recuso ser cúmplice de um sistema mais injusto. A economia subterrânea atinge níveis vergonhosos em Portugal (estamos tristemente no topo da Europa), contribui fortemente para aumentar as desigualdades sociais e pedir fatura é um dever de cidadania de que, no nosso interesse, individual e coletivo, não deveríamos abdicar. Como não vivemos num mundo ideal, sou adepto de medidas destinadas a incentivar os cidadãos a pedir fatura, mesmo tendo consciência de que por essa via só se está a tentar combater a evasão fiscal em pequenos e médios negócios, sem se atingir a grande evasão fiscal (que carece de outro tipo de medidas). Mas esta “fatura da sorte” concebida pelo Governo (sorteio de automóveis entre os contribuintes que pedirem fatura com o seu NIF), além de ser de eficácia mais do que duvidosa nos médios negócios (quem é que vai passar a pedir fatura e pagar, por exemplo, 300 ou 400 euros de IVA numa obra doméstica, só pela hipótese bastante improvável de a respetiva fatura vir a ser sorteada?!), é a todos os títulos absurda. Por exemplo, sortear automóveis ao mesmo tempo que se diz querer promover a mobilidade sustentável é um contrassenso que o Governo jamais conseguirá explicar. Admitir sorteios de carros a quem não tem carta de condução (o regulamento do sorteio não faz qualquer restrição) é um disparate em termos de segurança rodoviária, e isto num país que continua a ter números preocupantes de condução sem carta e, em geral, de sinistralidade rodoviária. Sortear automóveis de alta cilindrada, que é o que está em causa, não é apenas uma parolice de novo-rico; trata-se de automóveis mais poluentes e que consomem mais, sendo inaceitável que o próprio Estado incentive a sua utilização. E são carros de manutenção muito mais cara (desde o consumo de combustível às revisões, passando pelo seguro ou pelo imposto de circulação, são um sorvedouro de dinheiro), pelo que são um autêntico presente envenenado para o comum dos portugueses, que vivem com cada vez maiores dificuldades financeiras. Isto vindo de um Governo que não se cansou de acusar os portugueses de terem vivido acima das suas possibilidades, é obra!
Enquanto isto, em Fevereiro de 2014, uma simples queixa ao fisco feita por um cidadão que pagou um serviço mas viu-lhe recusada a emissão da respetiva fatura é uma coisa “complicadíssima”: não, não se pode preencher um qualquer formulário na internet; não, não é possível por correio eletrónico; não, não basta telefonar para a Autoridade Tributária. É preciso, pasme-se, ir pessoalmente à direção distrital de finanças do domicílio do comerciante que recusou entregar a fatura/recibo relativa à quantia recebida [Sim, sim, se, por exemplo, a fatura/recibo for recusada por um comerciante de Bragança (ex. unidade de alojamento turístico), eu teria de me deslocar a Bragança para fazer a respetiva queixa!] O que é isto senão um incentivo à não emissão de fatura?...   

10  A rifa do azar
«Chegámos ao cume da governação rasca. Saiu-nos na rifa mesmo sem darmos o NIF. É preciso ter azar».
(a frase do mês, por José Vítor Malheiros)

11  A frase mais estúpida
«Eu sei que a vida quotidiana das pessoas não está melhor, mas não tenho dúvidas de que a do país está muito melhor do que em 2011».
(por Luís Montenegro, líder parlamentar do PSD)

12  O país e as pessoas
A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) alertou para o facto de estarem a aumentar as situações de trabalho clandestino, havendo cada vez mais trabalhadores não declarados (na maioria, portugueses) a viver em «situações que andam na fronteira do trabalho escravo», incluindo a falta de pagamento de salários. A Confederação Nacional de Agricultura confirma.  
E enquanto as situações de trabalho clandestino e de falsos recibos verdes aumentam, o Inspetor-Geral da ACT alertou para o facto de a ACT ter deixado de ter verbas essenciais para o funcionamento da atividade de inspeção do trabalho em 2014, isto a acrescer ao número insuficiente de inspetores.

13  A “preocupação” com a natalidade
Os mesmos governantes que, através do “convite” à emigração, dos cortes, do desemprego, do aumento de impostos, da redução dos benefícios fiscais de quem tem filhos a cargo, da diminuição dos salários, do agravamento das condições de trabalho, incluindo aumento do horário de trabalho, etc., etc., etc., têm contribuído fortemente para a diminuição da natalidade em Portugal (que está no valor mais baixo de sempre), anunciaram um “grupo de trabalho” (mais um…) para que em três meses estude um plano de incentivo à natalidade.
Entretanto, num relatório divulgado em Fevereiro, um comité de 18 peritos independentes das Nações Unidas manifestou preocupação perante os «elevados níveis de privação entre as crianças» portuguesas, a exposição das crianças ao «risco crescente de pobreza» e as menores garantias de acesso aos cuidados de saúde, ao ensino e à proteção social pelas crianças em Portugal, alertando ainda o Governo português para a necessidade de travar novos cortes no setor da Educação.

14  O fim do estado de graça de Assunção Esteves
Por fim, uma boa notícia: o fim do estado de graça de Assunção Esteves. A comunicação social, que, estranhamente, a tinha em muito boa conta, demorou muito tempo a perceber, mas finalmente já toda a gente parece ter percebido que personagem temos como segunda figura do Estado, e que, segundo consta, aspirava a candidatar-se à presidência da república. Era o que nos faltava.
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