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Numa tarde de verão, duas
turistas jovens a passar férias no Algarve pediam boleia à saída da vila de
Almancil, para se deslocarem para Faro. A pequena viagem de 10 km viria a
tornar-se um pesadelo de que jamais se iriam esquecer. Apanharam boleia de um
homem de 22 anos (condutor), acompanhado de um rapaz mais novo (18 anos). Alguns
quilómetros depois, o condutor desviou o carro para uma estrada de terra batida
até parar num local ermo, sem habitações, nem gente nas proximidades. As
raparigas insistiam que queriam ir para Faro. Mas foram puxadas para fora do
carro. O rapaz mais novo agarrou uma delas, e enquanto ela se tentava libertar
atirou-a para o chão, tirou-lhe os calções e as cuecas, despiu-se e começou a tentar
violá-la; ela ofereceu resistência e o rapaz (que era virgem e inexperiente)
acabou por se levantar, assustado com os gritos da outra. Ela levantou-se
também, vestiu-se e começou a fugir. O homem mais velho perseguiu-a, agarrou-a
e trouxe-a de volta para junto do carro, já cheia de escoriações e equimoses.
Entretanto, a outra aproveitou para tentar fugir também, mas o homem agarrou-a,
fê-la cair de joelhos, «agrediu-a com pontapés pelo corpo e, agarrando-a pela
blusa, arrastou-a pelo chão cerca de dez metros»; ela tentou libertar-se, mas o
homem «esbofeteou-a e, agarrando-a por um braço, ameaçou-a com o punho fechado
de que a esmurraria», após o que lhe tirou os calções e as cuecas. Ela tentou
mais uma vez libertar-se, mas, «intimidada pelas atitudes agressivas, não
ofereceu mais resistência» e o homem violou-a, contra a sua vontade. Terminada
a violação, a rapariga, com medo do que viria a seguir, «tornou-se amável» e
elogiou o homem, dizendo-lhe «que era muito bom a manter relações sexuais», em
consequência do que ele as levou de carro a Faro, onde as deixou.
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
foi chamado a apreciar este caso, em recurso de uma sentença do Tribunal de Faro que condenara os dois homens, um por sequestro e violação (3 anos e 4
meses de prisão) e o outro, o mais novo, por tentativa de violação (10 meses de prisão, com
pena suspensa). Os quatro juízes do STJ produziram então, por unanimidade, um acórdão
tristemente célebre, que viria a tornar-se conhecido mais de um ano depois, quando foi publicado no Boletim do Ministério
da Justiça (publicação periódica de jurisprudência). A pena do homem mais velho até acabou por ser aumentada de 3 anos e
4 meses para 4 anos de prisão (não pela gravidade da violação, mas por o STJ
ter entendido que tinham sido cometidos dois crimes de sequestro, e não apenas um). Mas o que
ficou para a história foi a argumentação escabrosa com que os juízes do STJ,
recusando aumentar a pena aplicada pela violação (3 anos; a pena podia ir de 2 a 8 anos), destacaram as “atenuantes” da conduta do violador, designadamente a
“contribuição” das raparigas para o cometimento do crime:
«Se
é certo que se trata de dois crimes repugnantes que não têm qualquer
justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito
contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as
duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para
a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho
ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui,
tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível
e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel
juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que
corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde
abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito
mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas».
Os juízes do STJ salientaram
ainda o facto de a rapariga violada ter deixado «rapidamente» (!) de oferecer
resistência e, no fim, até ter elogiado «a forma e o ardor viril com que o seu
violador tinha com ela copulado».
Para o STJ, tudo isto não
queria dizer que a atuação do violador não fosse «censurável, pois sem dúvida
nenhuma que o é. Possivelmente, outras formas haveria, contudo, de ele manter
relações sexuais com uma ou até com as duas ofendidas. À força, como o fez, é
que não. De qualquer maneira, a gravidade do ilícito no caso concreto está,
como se disse, algo esbatida».
Em conclusão, segundo o STJ, tendo a rapariga violada "contribuído muito" para a realização do crime, era adequada a pena de 3 anos aplicada ao violador.
Em conclusão, segundo o STJ, tendo a rapariga violada "contribuído muito" para a realização do crime, era adequada a pena de 3 anos aplicada ao violador.
Os quatro juízes conselheiros que em 1989 subscreveram este insulto, de seus nomes Vasco Tinoco, Lopes de Melo, Ferreira Vidigal e Ferreira Dias, já não exercem, felizmente, funções como juízes, pois entretanto atingiram a idade da aposentação.
Ainda fará sentido
invocar este acórdão, mais de duas décadas depois?
Nestes 25 anos,
terá certamente havido uma evolução positiva, mas continuam a chegar ao
conhecimento público muitas decisões judiciais infelizes (ainda que nem sempre fielmente citadas na imprensa), quer em matéria de crimes sexuais, quer no domínio da violência
conjugal contra mulheres. Umas bastante mais subtis do que outras. Um pobre de espírito que matou a sua mulher por estrangulamento
recorreu para o STJ argumentando, como justificação para o crime que cometeu, coisas como o facto de a mulher ter deixado
algumas vezes esturricar a comida, uma vez ter saído de casa sem lhe dar
conhecimento, ou ter chegado a mostrar a barriga na presença de pessoas
amigas, durante uma conversa sobre a condição física de cada uma delas. Embora o STJ tenha
recusado considerar estas circunstâncias como atenuantes do crime cometido, não
deixou simultaneamente de referir que teria faltado a ambos – marido e mulher –
«tolerância, resignação, paciência e compreensão para ultrapassarem a tragédia
da morte da filha», tendo-se ambos refugiado «em comportamentos que conduziram
à destruição do casal e, pior do que isso, à morte da esposa» (o
comportamento da vítima conduziu à sua morte); e ao referir as
atenuantes que justificavam a medida da pena aplicada ao homicida, o STJ voltou
a invocar as «desavenças conjugais, onde por regra não existe apenas um culpado,
que conduziram ao crime», acrescentando que «não terão sido alheias as
condutas anteriores da vítima, designadamente os levantamentos bancários, deixando
as contas do casal a zero, a ponto de o arguido ficar sem dinheiro para pagar o
almoço; e, talvez isto, o detonador da raiva que conduziu ao homicídio!». Este
tipo de ambiguidade, do “não é desculpabilizante, de maneira nenhuma, mas ao fim e ao cabo até é”, ainda se encontra em muitas decisões judiciais. Mas também não faltam exemplos de decisões menos ambíguas, como o de um acórdão do STJ de 2004 em que foi
invocado como circunstância atenuante do homicídio o facto de a mulher,
assassinada pelo marido a tiros de caçadeira (com um filho de 5 anos a assistir), ter
deixado de manter com ele relações sexuais:
«…Não
esquecendo ainda assim as atenuantes de que o arguido deve beneficiar, e assim,
por um lado, que é analfabeto, e, também, que a vítima, sem que se saiba porquê
– ignorância mais uma vez favorável ao arguido em sede de valoração da prova – “após
finais de março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter
terminado um contrato de trabalho, passou a não querer manter relações sexuais
com ele”, circunstância, que, pelo menos, permitirá a afirmação de que nem só
do lado do arguido terá havido violação dos deveres conjugais».
Esta recusa da
mulher em manter relações sexuais com o marido (dois meses antes do homicídio) aconteceu, aliás, após um historial de pancada nos meses anteriores (provou-se que «no último ano
da vida conjugal, o arguido por diversas vezes e na presença dos filhos, bateu
e insultou a mesma, chamando-a por diversas vezes de "puta"» e que «no
mês de Agosto de 2001 [9 meses antes do homicídio] o arguido, também na
sequência de desentendimentos com a ofendida, pegou numa arma para a atemorizar
e aos filhos, tendo a ofendida nesta data e noutras alturas necessitado de se
refugiar com os seus filhos, do arguido»). Estes antecedentes não impediram o STJ de concluir que «afinal, até ao dia da consumação do crime, pode afirmar-se que o arguido não passava de um homem normal»!
Recentemente,
uma equipa de investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra desenvolveu um projeto, ao longo de quase dois anos e meio, centrado na
temática da violência doméstica contra as mulheres, que incluiu um estudo sobre
a prática judiciária, com recurso não apenas às estatísticas da Justiça, mas também à análise de processos-crime, à assistência a julgamentos e
à realização de entrevistas a quase uma centena de profissionais do direito
(designadamente, magistrados e advogados).
Os resultados
do estudo permitiram concluir que «o discurso judicial
se vai mantendo fiel a certos modelos sociais que regulam as relações de género».
Nomeadamente, o estereótipo da mulher que leva os homens a praticar crimes
contra ela, da mulher também culpada do crime de que foi vítima, ainda se encontra
refletido em numerosas decisões judiciais e no próprio discurso de alguns dos
magistrados que foram entrevistados ao longo do projeto, estando este tipo de
construção social de vítima «tão enraizada na sociedade que leva a que estes atores
judiciais tenham pouca, ou mesmo nenhuma, consciência dos estereótipos que
carregam». Por exemplo, um dos juízes entrevistados afirmou:
«Há vítimas que se
põem a jeito. A vítima cria situações de provocação, só que depois não consegue
resolver o problema, nem encontrar solução. (…) Isto é como as violações. Como
eu costumo dizer, a mulher pode permitir tudo até à última, mas depois diz que
não. E não é não. Se o homem continuar, está a violar, não há dúvidas nenhumas.
A vontade da pessoa tem de ser muito ponderada. Claro que a mulher que depois
andou até às últimas, a permitir tudo e mais alguma coisa, acaba por ter algum
merecimento nesta situação. Mas a verdade é esta, servirá para compreendermos
melhor a atitude do arguido, mas não servirá tanto para desculpá-lo. Embora
isto não deixe de ser de alguma maneira um fator desculpabilizante».
Terá certamente havido progressos desde o tempo do acórdão da coutada do macho ibérico. Mas, citando uma das investigadoras autoras do projeto atrás mencionado,
«há ainda um longo caminho a percorrer»…
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É falsa a descrição do 1º acórdão, alguém resolveu acrescentar ao texto original. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d97387ad75cab970802568fc003a2815
ResponderEliminarNão, a descrição não é falsa. Não confunda o sumário com o texto da decisão. Na ligação que indicou só está o sumário, não o texto integral do acórdão.
ResponderEliminarOs Juízes do STJ estão limitados a juízos de direito. Foi dado como facto provado pelos tribunais inferiores que o comportamento das mulheres revelou algum tipo de consentimento. O STJ não pode mudar matéria de facto assente pelos tribunais inferiores, logo tem a obrigação de considerar esse facto na atribuição.
ResponderEliminarÉ falsa sim. Este acordão é escabroso mas não convém divagar muito à imagem do Tuga...
ResponderEliminarNão é falsa não.... O link enviado apenas tem sumário do acórdão............. O acórdão ficou conhecido como o acórdão da coutada do macho iberico.......
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