26.6.13

A apresentação pública da revisão do Código das Expropriações

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Com os anos, a nossa capacidade de espanto vai diminuindo. Mas ontem não consegui evitar ficar boquiaberto ao ouvir, na televisão, uma notícia sobre a apresentação pública, pela Ministra da Justiça, do projeto de revisão do Código das Expropriações.

(Na versão final do projeto ontem apresentado, já não estamos perante um “novo” Código das Expropriações - como na versão inicial -, mas perante uma simples alteração do Código em vigor: de facto, não passa disso.)

Começava a notícia por revelar a "novidade" de que estava em causa a revisão de uma «lei da década de 30 do século passado» (o que jogava bem com as referências da Ministra ao “fim do autoritarismo” do Estado neste domínio). O atual Código das Expropriações foi, de facto, publicado no século passado – mas em 1999. Há 14 anos. E antes dele houve mais dois códigos de expropriações no regime democrático. Nos anos 30, não existia sequer Código das Expropriações, nem qualquer coisa que se assemelhasse à atual lei (como se pode imaginar, estando nós a falar do tempo de Salazar e do assunto “expropriações”).
 
A segunda “novidade” noticiada foi a de que, na ausência de acordo entre a entidade expropriante e o expropriado quanto ao valor da indemnização a pagar, «o caso não segue para o tribunal comum, como agora, mas para o tribunal arbitral». Esta pretensa novidade foi difundida ainda noutros órgãos de comunicação social.
 
(Exemplos: «[A arbitragem] torna-se obrigatória» nas expropriações litigiosas (TVI 24, Visão, Diário Económico, Notícias ao Minuto). «A arbitragem já é possível hoje em dia, mas passa a ser obrigatória, numa tentativa de travar novas ações em tribunal» (Negócios).    
 
Ora, a arbitragem é, há muitos anos, obrigatória em todos os processos de expropriação litigiosa, sem qualquer exceção. Nas expropriações litigiosas, a arbitragem já funciona como tribunal de primeira instância: só se as partes não concordarem com a indemnização fixada pelos árbitros é que há recurso para os tribunais comuns. Não há rigorosamente nada, no projeto ontem apresentado pela Ministra, que altere este regime.
 
Claro que há sempre que contar com a hipótese de os jornalistas não terem reproduzido com rigor as palavras da Ministra da Justiça (o que não causaria grande surpresa). Mas quando todos os órgãos de comunicação social noticiam o mesmo, é de suspeitar que os jornalistas foram induzidos em erro. Aliás, no sítio do Governo pode ler-se, a este propósito, que «a arbitragem passa a funcionar como um tribunal de primeira instância» (o que, no mínimo, se presta àquela conclusão). Repete-se: a arbitragem funciona há muito como tribunal de primeira instância, em todas as expropriações litigiosas. 
 
Na apresentação de ontem, recorreu-se a chavões e a ideias-chave que, na realidade, não têm apoio no texto do projeto apresentado. Exemplos (retirados do sítio do Governo ou citados na comunicação social):
- «Este diploma é um contributo fortíssimo para a transparência nas áreas do urbanismo e do ordenamento do território».
- [O caminho seguido na revisão do Código das Expropriações é o da] «simplificação».
- Promove-se «uma nova cultura entre a Administração Pública e os cidadãos, assente numa maior transparência».
(e outros como “procura do justo valor da indemnização” a pagar, “consensualização” ou “transformar, através da arbitragem, as expropriações litigiosas em expropriações amigáveis”)
 
Mais condicentes com o projeto de revisão apresentado
(que, diga-se, também tem algumas alterações positivas)
seriam estas ideias-chave:
- “Aumento de procedimentos e de burocracia”.
- “Arrastamento no tempo dos processos de expropriação”.
- “Pagamento de indemnizações mais baixas aos cidadãos expropriados, sem preocupação de garantia do princípio da justa indemnização” (a cláusula de salvaguarda é excluída do Código e a intenção de poupar dinheiro com o pagamento de indemnizações foi revelada no próprio preâmbulo).
- “Retirada de processos dos tribunais judiciais, atafulhando ainda mais de pendências os tribunais administrativos”.  
 
Sobre este último ponto, a Ministra apresentou como justificação “acabar com a dispersão e a repartição de processos deste tipo pelos tribunais” (judiciais e administrativos), esquecendo que a medida, em termos práticos, praticamente só tem desvantagens. É um erro grave, que não foi corrigido na última versão do projeto de revisão. A Ministra ontem reconheceu que os tribunais administrativos não têm capacidade de resposta para receber a competência em matéria de expropriações litigiosas e já admite a possibilidade de se prever um “período de transição”, em que os processos permaneceriam nos tribunais judiciais. Mas não é isso que resulta do projeto de revisão. 
 
O projeto de diploma foi agora transformado numa proposta de lei de autorização legislativa, o que, em termos práticos, significa que a lei não vai ser discutida na Assembleia da República. Talvez porque a discussão, no Parlamento, do novo Código de Processo Civil (hoje publicado em Diário da República) não correu muito bem à Ministra. «Embuste» foi a primeira palavra utilizada para descrever o “novo” Código de Processo Civil, pelo maior especialista português na matéria, logo a abrir a sua audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Tirar o processo legislativo relativo ao Código das Expropriações da Assembleia da República tem essa “vantagem”: “escusa-se” de se “perder tempo” a ouvir a opinião técnica de diversos especialistas na área. Poupa-se tempo. E incómodos.
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