18.6.16

A (des)promoção I


Somos pais – pai, mãe – e deixámos de ter nome. Ainda me recordo daquela primeira vez em que ouvi
“Pai, importa-se de…?”
e de ter pensado
“Então mas a enfermeira trouxe para aqui o pai dela?!”
e de ouvir de novo a enfermeira, a insistir
“Pai, importa-se de…?”
e eu a olhar à minha volta para perceber onde estava o dito pai. Como não havia mais nenhum homem ali, percebi, surpreendido, que o “pai” era eu.

Habituar-me-ia rapidamente. O tratamento por “mãe” e “pai” é geral, em qualquer serviço destinado à criança (creches, maternidades, hospitais, centros de saúde, consultórios de pediatria, etc.).

E parece que fazem especial esforço por abusar do uso do “pai” e da “mãe”. Raramente um simples
“Importa-se de…?”
Quase sempre um
“Pai, importa-se de…?”.
“Obrigado, pai”.
 “Adeus, pai”.
(Às vezes sinto-me tentado a responder
“Adeus, minha filha”.) 

É como se ao ganharmos a condição de pai / mãe tivéssemos perdido todas as outras e a nossa existência tivesse passado a valer unicamente por sermos pais.

Nunca se saberá como é que isto começou. Mais impressionante é como é que se propagou ao ponto de se generalizar.
(Sem qualquer paralelo. Por exemplo, se levarmos a nossa mãe a uma consulta, ninguém nos diz
“Filho, importa-se de…?”
“É por ali, filho, primeira porta à direita”
"Adeus, filho".)

O mundo ao contrário. Ontem, quando, na creche dos meus bebés, uma auxiliar da sala deles, que sempre me tinha tratado por “pai”, disse
“Jorge, é preciso trazer mais fraldas”
foi instintivo: olhei à minha volta para ver quem é que era o fidalgo que tinha o privilégio de ser tratado pelo seu nome. Como não havia mais nenhum homem ali, percebi, surpreendido, que o "Jorge" era eu.
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1 comentário:

  1. Este texto foi escrito há algumas semanas. Desde essa altura, a mesma auxiliar da creche continuou a tratar-me pelo meu nome. Continua a ser exceção única, mesmo na creche.

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