30.1.14

O relatório do GT IEVA: um país que não aprende

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O relatório do grupo de trabalho para as “infraestruturas [de transportes] de elevado valor acrescentado” (GT IEVA) foi ontem tornado público pelo Governo.

É um mau relatório, não assenta em dados credíveis e repete erros do passado.

A falta de credibilidade pode ser exemplificada com a obra de construção do troço da autoestrada A25 entre Vilar Formoso e a fronteira, um dos 89 projetos selecionados no relatório. Trata-se de um troço de 3,5 km de autoestrada, com um custo de 12 milhões de euros. Segundo o relatório, o tráfego estimado para este troço é de 10 mil veículos por dia. Esta previsão de tráfego é completamente fantasiosa: se consultarmos os dados de tráfego oficiais do IMT, os troços imediatamente anteriores da mesma autoestrada (até Vilar Formoso) têm um tráfego diário na casa dos 4 mil / 5 mil veículos por dia. Aliás, entre Mangualde e Vilar Formoso não há um único troço de autoestrada onde o tráfego atinja os 10 mil veículos (a exceção é o mês de agosto, quando, com a entrada e saída de emigrantes, o tráfego supera um pouco os 10 mil)! Foi com base neste tipo de previsões irrealistas que no passado se fizeram autoestradas que nunca deviam ter sido construídas. Mas, pelos vistos, as previsões fantasiosas continuam a fazer-se! Que credibilidade tem um relatório onde se avaliam projetos com base em dados sem qualquer correspondência com a realidade?

O relatório retoma outro tipo de erros do passado. O documento defende que é prioritário para o país gastar perto de 200 milhões de euros no troço de autoestrada designado por “túnel do Marão” (na realidade, são 30 km de autoestrada, que incluem o dito túnel de apenas 6 km). Só a partir de um tráfego diário de 10 mil veículos é que se justifica construir uma autoestrada. Mas segundo o próprio documento, o tráfego previsto para esse troço (8 mil veículos por dia, e isto já imaginamos ser um exagero...) é inferior a esse limite mínimo. O grupo de trabalho não concluiu apenas que este disparate é prioritário para o país: concluiu que é a quinta infraestrutura mais prioritária!  

O relatório propõe a execução de, pelo menos, 30 projetos considerados “prioritários”, com um custo global estimado de 5,1 mil milhões de euros. O documento estima que 54% deste valor (2,8 mil milhões de euros) poderá ser comparticipado por fundos comunitários (admite-se que a comparticipação possa chegar aos 3,1 mil milhões de euros, mas com um «elevado grau de incerteza», designadamente no que diz respeito à comparticipação do financiamento respeitante às autoestradas previstas). Sobram, portanto, 46%, o equivalente a 2,3  mil milhões de euros. É muito dinheiro. O relatório estima que, destes 2,3 mil milhões, “só” 1,3 mil milhões sejam suportados pelo setor público, o equivalente a 25% do investimento total. A parcela sobrante (21%) seria comparticipada pelo “setor privado” (através, nomeadamente, de «contratos de concessão de longa duração», e, no caso das autoestradas, «por via da antecipação de receitas de tráfego»). Isto significa duas coisas. Em 1.º lugar, repete-se o erro do desvio de investimento privado para os chamados bens e serviços não transacionáveis, erro que tantos males já causou ao país. Em 2.º lugar, insiste-se numa falácia que nos tem perseguido: a de que o investimento privado nestes projetos não corresponde a qualquer custo para o setor público, como se estivéssemos perante mecenas que simplesmente resolvessem dispor de 1000 milhões de euros, gratuitamente, sem contrapartidas, em benefício da comunidade. Sabemos que não é assim (e percebemos muito bem que não é assim quando ouvimos falar de «antecipação de receitas de tráfego»). De uma maneira ou doutra, também esses 1000 milhões de euros serão suportados pelo setor público.

Como estamos a falar de muito dinheiro dos contribuintes num país que diz ter tanta falta dele, o mínimo que se exige é que só se gaste naquilo que é realmente prioritário.

A metodologia adotada pelo GT IEVA, com base na qual foram selecionados 30 projetos considerados “prioritários”, é, desse ponto de vista, inaceitável. Num grupo de trabalho constituído por 19 entidades (dos quais 12 eram entidades privadas), as várias entidades apresentaram uma lista de projetos que, no seu entendimento, deviam ser executados. Depois de o grupo de trabalho ter excluído liminarmente alguns dos projetos indicados pela REFER e pela EP (só destas duas entidades públicas é que se excluiram projetos), obteve-se uma lista de 238 projetos, dos quais foram selecionados 89 para avaliação.

A avaliação da prioridade dos projetos foi feita exclusivamente com base no critério da sua relevância «para a competitividade da economia portuguesa», o que já de si tem que se lhe diga (mas já não causa grande admiração). Dentro dessa ideia, preferiu-se privilegiar o transporte de mercadorias, em detrimento do transporte de passageiros (como se a aposta em infraestruturas de transporte público de passageiros não trouxesse enormes vantagens em termos económicos; e não vale a pena falar em benefícios sociais, porque tal coisa não foi considerada relevante). E privilegiaram-se os projetos baseados em infraestruturas já existentes, em prejuízo de novos projetos, o que significa que os projetos considerados prioritários pelo grupo de trabalho podem não corresponder, afinal, àqueles que são, de facto, prioritários para o país.

Os benefícios ambientais dos projetos foram completamente ignorados (estamos no século XXI!), não obstante a sua indiscutível relevância económica.

A metodologia padece de outros vícios, como, por exemplo, ter-se conferido maior peso na avaliação a projetos que se enquadrassem na política de transportes, nomeadamente no infeliz documento aprovado pelo Governo em 2011 denominado “Plano Estratégico de Transportes” (PET). Uma avaliação presa às diretrizes do PET não é, na realidade, uma avaliação independente das infraestruturas de transportes verdadeiramente prioritárias para o país. Uma avaliação condicionada pelas diretrizes de um mau plano de transportes (como é o caso do PET) é uma avaliação condenada à partida.

As críticas que se podem fazer ao relatório do GT IEVA não terminam por aqui, mas este texto já vai demasiado longo. Em matéria de mobilidade, o relatório padece dos males que tanto prejuízo têm causado ao país nas últimas décadas, nomeadamente, a falta de coerência e de visão de futuro. O que explica, por exemplo, que se proponha que 15% do investimento total dos próximos sete anos seja feito em autoestradas (este país não aprende!!) ou que nos 89 projetos selecionados surjam aberrações como um investimento de 300 milhões de euros numa nova ligação rodoviária entre Carregado e Venda das Raparigas (tráfego “estimado” de 4800 veículos por dia), 120 milhões numa ponte rodoviária de 5 km entre Barreiro e Seixal ou 600 milhões na nova autoestrada entre Coimbra e Viseu, esta última considerada a 22.ª infraestrutura de transportes mais prioritária para Portugal!...  

(a seguir, se houver tempo: a ferrovia neste relatório)
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