6.12.13

Cavaco Silva e Nelson Mandela

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Aquilo que eu fiz em menos de meia hora, sentado em frente a um computador com ligação à internet, poderia ter sido feito pelos jornalistas dos vários jornais e canais de televisão que hoje não hesitaram em publicar notícias dando conta de que em 1987, quando Cavaco Silva governava o país, Portugal foi um dos únicos 3 países do mundo que votaram contra a resolução das Nações Unidas pela qual se exigia a libertação imediata de Nelson Mandela, bem como pelos muitos políticos e comentadores que deram como certo esse facto e criticaram, por isso, a “hipocrisia” da declaração ontem proferida por Cavaco Silva sobre a morte de Nelson Mandela.

Sucede que, tal como vinha sendo prática corrente nos anos anteriores, naquela mesma sessão da Assembleia Geral da ONU foram votadas várias outras resoluções respeitantes à África do Sul, e uma delas, pela qual também se exigia a libertação imediata de Mandela, foi votada favoravelmente por Portugal. E é claro que este facto é muito relevante, alterando o essencial do sentido daquelas notícias e comentários hoje amplamente divulgados.

Falar em “resoluções das NaçõesUnidas para a libertação de Nelson Mandela” é também, no mínimo, muito pouco rigoroso. A ONU nunca aprovou uma resolução tendo apenas por objeto a libertação de Mandela. Aprovou, sim, várias resoluções com diversos pontos, um dos quais a exigência de libertação imediata e incondicional de Nelson Mandela, de Zephania Mothopeng e dos demais presos políticos do regime do Apartheid. E se, por esta altura, era generalizado o consenso da comunidade internacional contra o regime do Apartheid e em torno da exigência de libertação de Mandela e de outros presos políticos, outros pontos eram mais controversos, nomeadamente o apoio à luta armada contra o regime sul-africano.  

A existência de várias resoluções aprovadas todos os anos, na década de 80, contra a África do Sul, com alguns pontos em comum, espelha precisamente a falta de consenso em torno de algumas questões, embora fosse praticamente unânime a condenação do regime do Apartheid, como se pode verificar, por exemplo, através da consulta do diário da sessão de 20/11/1987 da Assembleia Geral da ONU. É de notar que, dos 12 países que então integravam a União Europeia, só a Grécia votou a favor da resolução contra a qual votou Portugal. Outros 9 países abstiveram-se, e estas abstenções foram fundamentadas em intervenções feitas na Assembleia Geral que podem ser lidas naquela ata, e das quais resulta uma clara condenação do Apartheid.  

Dito isto, o certo é que, depois da aprovação, sem um único voto contra, da Resolução das Nações Unidas n.º 39/2, de 1984 (onde, entre outros pontos, também se exigia a libertação imediata e incondicional dos presos políticos do Apartheid), e numa altura em que finalmente o regime do Apartheid era abertamente condenado em todo o mundo, muito poucos foram os países que ousaram votar contra as resoluções subsequentes da ONU contra a África do Sul, mesmo que com teor mais controverso (por exemplo, contra a Resolução 40/64B, de Dezembro de 1985, votaram apenas 8 países, incluindo Portugal e alguns países da CEE). Os 3 únicos votos contra a Resolução 42/23A, de 1987, aprovada com 129 votos a favor, não deixam, pois, de assumir particular significado, sendo incompreensível que Portugal, em vez de se abster, tenha então optado por votar contra – e em má companhia, aliás (os EUA de Ronald Reagan e o Reino Unido de Margaret Tatcher, que Cavaco Silva muito admirava). Pior, só os tempos em que, no regime salazarista, havia resoluções da ONU aprovadas com apenas dois votos contra, sendo Portugal um deles e… o regime do Apartheid o outro...

De qualquer modo, tendo em conta que, na mesma data, Portugal votou a favor de outra resolução, aquele voto contra, tendo indiscutivelmente um significado político (seria matéria para outro artigo), não tem o significado que lhe quiseram atribuir, ao se acusar Cavaco de votar contra "a resolução da ONU pela libertação de Mandela". 

Hipocrisia existiu na comunidade internacional durante muitos anos, acerca da questão sul-africana. 

Quanto a Cavaco Silva (cuja lista de hipocrisias, diga-se, já é bastante extensa), o que se pode dizer é que o nosso Presidente da República está nos antípodas de Nelson Mandela, e, quando comparado a Mandela, é uma anedota de político e de governante. Basta lembrar, por exemplo, que enquanto Mandela promoveu a união e a reconciliação entre sul-africanos divididos por décadas de ódio racial, Cavaco Silva é um governante que divide os portugueses e é um cúmplice declarado de um Governo que tem como um dos principais instrumentos de atuação pôr os portugueses uns contra os outros.

Tenho pena sempre que atacam Cavaco Silva com argumentos um pouco falaciosos. Porque depois a sua imagem acaba sempre por ser um pouco reabilitada - e se há pessoa que não merece reabilitações de imagem, é Cavaco Silva.
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