31.1.12

Andar a pé ou ser um português de sucesso


Há algumas semanas, a revista Pública trouxe uma reportagem sobre o passado “modesto” de alguns “portugueses de sucesso”. Em letras garrafais que ocupavam duas páginas inteiras da revista, a súmula da reportagem centrava-se na diminuta probabilidade de determinada pessoa, em determinada situação no passado, chegar onde chegou: por exemplo, uma técnica numa fábrica de vidros chegou a presidente do maior grupo automóvel em Portugal; um pastor solitário transformou-se numa revelação do fado; uma menina de uma aldeia pobre do Alentejo é agora a voz dos sindicatos da função pública; um empregado fabril é hoje presidente de câmara; estas e outras pessoas tinham desafiado as probabilidades de virem a ser “portugueses de sucesso”.

Mas as primeiras palavras eram estas: «qual a probabilidade de um miúdo que caminhava meia hora para o trabalho se tornar campeão nacional de golfe – 11 vezes?”. Este caso era tão "extraordinário" que foi escolhido para ocupar toda a capa da revista. E o texto da reportagem relativo a este “incrível” caso começa precisamente por enfatizar os trinta minutos que António Sobrinho fazia a pé entre casa e o trabalho. Andava meia hora a pé de casa para o trabalho – e chegou onde chegou!

(percebo finalmente por que razão não sou um português de sucesso: desde pequeno que me habituei a andar a pé)

Este é o retrato de um povo que utiliza excessivamente o carro e que, em consequência disso - além de infernizar a vida nas zonas urbanas -, se tornou bastante sedentário. Não falta hoje quem tenha por costume pegar no carro para se deslocar apenas 500 metros ou um quilómetro. Os números revelam que a maior parte das viagens de carro em Portugal são feitas em percursos curtos. De acordo com dados recentes, na União Europeia a 15, os portugueses são os que andam menos a pé. Neste contexto, andar meia hora a pé entre casa e o trabalho é, para muita gente, absolutamente impensável. Uma aventura. Uma loucura. Ou um sinal de pobreza.

Meia hora é precisamente o tempo mínimo que se recomenda que as pessoas andem a pé todos os dias, para prevenir, por exemplo, doenças cardiovasculares (não se convença de que basta ir ao ginásio uma ou duas vezes por semana para colmatar a falta de exercício diário suficiente). Em passo rápido, meia hora a pé significa aproximadamente três quilómetros; em passo normal, serão mais ou menos dois quilómetros. Quase nove quilómetros é o que devemos andar a pé num só dia (total de deslocações a pé).

As doenças cardiovasculares foram a principal causa de morte em Portugal na última década, destacando-se, entre elas, o AVC, que afecta pessoas cada vez mais jovens. O número é assustador: mais de 100 pessoas morrem por dia em Portugal de doenças cardiovasculares (uma em cada 15 minutos) e muitas mais ficam total ou parcialmente incapacitadas para o resto da vida.

Para o sedentário que abusa do automóvel, existe um factor de risco acrescido de doença cardiovascular: o stress provocado pela condução (e um risco acrescido de cancro, estando demonstrado que no habitáculo do automóvel se respiram partículas poluentes cancerígenas, mesmo com todas as janelas fechadas).

Além de ajudar a prevenir doenças cardiovasculares, andar a pé faz bem à saúde por muitas outras razões. A lista de benefícios é muito grande: melhora a visão periférica; reduz o risco de alguns dos cancros mais frequentes (ex. mama, próstata, cólon); ajuda a prevenir a diabetes ou o desenvolvimento desta doença; contribui para baixar os valores de açúcar no sangue; melhora a circulação sanguínea; melhora a capacidade de transporte de oxigénio a todas as células do organismo; melhora a capacidade de equilíbrio; facilita a libertação de hormonas anti-stress e de endorfinas (que aumentam a sensação de bem-estar geral); aumenta a auto-estima; diminui os estados de ansiedade, insónia e depressão; melhora a condição física e facilita a concentração no trabalho e nas tarefas diárias; faz bem aos ossos; faz bem à coluna; previne a osteoporose e a osteoartrite; ajuda a manter o peso ideal e a reduzir o volume de gorduras (e a partir dos 20 minutos de caminhada, começa-se a queimar gordura acumulada como combustível); favorece o trânsito intestinal; etc., etc., etc.

Andar a pé não faz só bem à saúde: é gratuito (ao contrário da utilização do carro), é benéfico para o ambiente e é uma excelente oportunidade para pensar e para organizar ideias.

Se tiver filhos, pense no futuro deles: não os habitue mal, levando-os de carro para todo o lado. Lembre-se de que os filhos tenderão a adquirir os hábitos dos pais, e que não estará a ajudá-los (pelo contrário) se eles crescerem a pensar que a mobilidade deve ser feita preferencialmente de carro.

Na próxima vez que pensar em pegar no carro para se deslocar 500 metros ou um ou dois quilómetros, vá a pé. E não se desculpe com os desníveis: se o trajecto os tiver, mais exercício fará.

Pense seriamente nisso. Poderá ser menor a “probabilidade” de vir a ser um “português de sucesso”, mas pelo menos aumentará a probabilidade de viver mais anos e com mais saúde…
SPACE
II
Como não sou um português de sucesso, já coleccionei dezenas de histórias absurdas que poderia relatar aqui. Poucas semanas atrás, numa pequena vila, perguntei a um senhor onde é que se vendiam jornais e a resposta centrou-se nisto: teria de pegar no carro, porque a pé era «longe»; fui a pé e não eram mais do que uns três minutos. Mais recentemente, numa cidade beirã onde fui em trabalho, perguntei, no hotel, qual era o caminho mais perto para o centro, a funcionária começou a dar-me instruções para ir de carro e fui olhado como se fosse doido quando desfiz o equívoco e afirmei que queria ir a pé; fui a pé e demorei exactamente sete minutos (!) a chegar à praça central da cidade, em passo normal. Era outra a funcionária do hotel quando fiz o pagamento, na hora da saída; na cabeça da menina soaram vinte sirenes quando percebeu que eu não ia querer um táxi e que tinha decidido ir a pé para a estação de comboios; depois de me explicar que «olhe é que é muito longe» e de insistir «mas olhe que é mesmo muito longe», lá acabou por desistir, depois de – acho eu – se ter acendido uma luzinha dentro da sua cabeça e ter concluído que aquilo que eu queria era poupar o dinheiro do táxi (na mente dela, que outra explicação poderia haver?); andei menos de vinte minutos a pé até à estação, transportando uma mala com rodinhas: uma loucura! Ainda hoje estou em convalescença desse "esforço sobre-humano".
SPACECE

2 comentários:

  1. A história da minha vida...quer seja a pé ou de bicicleta! Muito bem escrito! Abraço

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  2. É mesmo Gonças ;)

    Bom artigo, só faltou mesmo o link para a noticia original, fiquei curioso

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