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«O
nosso dia-a-dia sofre de um excesso de futuro. Se o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche se queixava do peso da história, que estaria a esmagar a Europa
oitocentista, nós vivemos hoje obcecados com aquilo que nos espera. O aumento
exponencial da dívida, privada e pública, e o perigo iminente da bancarrota nas
sociedades ocidentais, assim como os problemas ecológicos, que caminham a
passos largos para um final trágico, sugerem que o apocalipse está ao virar da
esquina. Como fazer face aos tempos vindouros numa época de múltiplas crises?
Com
estes tumultos, nasce uma nova futurologia. Verificamos que os nossos políticos
se convenceram de que sabem o que o futuro quer e precisa. Decisões sobre
impostos, saúde e reformas são tomadas em nome de gerações futuras, às quais
nos compete legar um país desenvolvido e próspero. Mas como determinar os
interesses de pessoas que ainda não nasceram? Seremos realmente capazes de
ouvir aquilo que o futuro nos diz, ou melhor, nos sussurra, por entre os
clamores da atualidade? E, mais importante ainda, não serão as nossas
obrigações para com o presente mais urgentes?
É certo que muitas das nossas ações terão
consequências a longo prazo sem precedentes na história humana. Os efeitos de
um desastre nuclear como o que ocorreu em Fukushima, no Japão, em Março de
2011, far-se-ão
sentir por muitas décadas, depois de as organizações responsáveis pela
catástrofe estarem já completamente esquecidas. Mas dar-nos-á o tamanho descomunal
do nosso impacto na posteridade o direito de falar em nome de seres humanos
futuros? Por outras palavras, quais as bases éticas e epistemológicas que regem
a nossa relação com o porvir?
Ao
destacarmos o futuro em debates políticos e filosóficos, arriscamo-nos a
convertê-lo num instrumento ideológico para justificar as políticas do
presente. Por exemplo, as mais recentes medidas de austeridade do Governo,
incluindo o corte nas pensões de sobrevivência, a nova diminuição dos salários
da função pública, os cortes no orçamento do Sistema Nacional de Saúde e a
confirmação da subida da idade da reforma para 66 anos em 2014 são
invariavelmente justificadas através de um apelo à solidariedade
intergeracional. Sacrificamo-nos agora para que os nossos filhos, netos e
bisnetos vivam num país com uma economia sustentável. De boas intenções o
futuro está realmente cheio. Assistimos em Portugal à reductio ad absurdum
deste
discurso político: há portugueses a passar fome e pessoas que evitam aceder a
cuidados médicos, porque não podem pagar os seus custos - ou seja, se
continuarmos por este caminho, não existirão as gerações futuras, em nome das
quais nos estamos a sacrificar. A forte queda da natalidade no país desde o
início da crise aponta neste sentido.
Este
tipo de argumentos reduzem as gerações futuras a meras justificações para os
jogos de poder do presente. E assim, enquanto sufocamos sob o peso do futuro,
roubamos-lhe a sua futuridade, sobrecarregamo-lo com as nossas preocupações e
usurpamos o espaço que lhe é próprio. Ao reivindicar o direito de falar em nome
do futuro, arrogamo-nos a prerrogativa de sermos os seus representantes e
transformamo-lo numa mera extensão da atualidade. O reverso desta colonização
do futuro é a sua idealização como a razão de ser de todas as nossas ações. O
futuro converte-se num fetiche que suplementa as deficiências e redime os
defeitos do presente.
Uma boa
dose de epicurismo contribuirá certamente para nos curarmos da inflação do
futuro a que vimos a assistir. Não que devamos adotar uma atitude
despreocupada, que nos desresponsabilize de questões éticas e políticas
prementes. Seria preferível, no entanto, que os nossos políticos se
concentrassem no presente e nos seres humanos já existentes, de forma a
responder adequadamente às suas necessidades.
O
futuro não deve ser utilizado como manobra de diversão para nos fazer esquecer
o aqui e o agora. A posição mais ética em relação aos tempos vindouros é a de
deixar o maior número possível de opções abertas para as próximas gerações.
Mas, para isso, é necessário investir num presente melhor. Só assim é que o
futuro terá verdadeiramente futuro».
(Versão portuguesa do artigo «What do we owe the future?», de Michael Marder e de Patrícia Vieira, publicado no International New York Times (aqui),
Outubro de 2013)
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