3.5.15

Culpabilizar as vítimas

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Há, em Portugal, uma notória tendência, transversal a toda a sociedade, para a desculpabilização da condução perigosa, e em particular aquela que se relaciona com a velocidade.

A desculpabilização dos condutores que provocam desastres graves ocorre basicamente de duas maneiras. A primeira consiste em invocar toda uma série de desculpas para o desastre, desde as condições atmosféricas ao estado da estrada, passando por muitas outras (a velocidade é sempre desvalorizada). A segunda passa por apontar o dedo à vítima.

Ambas são abundantemente utilizadas em Portugal. A segunda, sobretudo no caso do atropelamento de peões, e mesmo por entidades com responsabilidade em matéria de segurança rodoviária (exemplos em breve neste blogue).

Este sábado, 2 de maio de 2015, um condutor ia “a abrir” no IC2, despistou-se numa curva, o carro em despiste destruiu os pinos que separavam a sua faixa de rodagem da faixa reservada à circulação de peões (peregrinos), invadiu esta faixa e atropelou mortalmente cinco dos cerca de 80 peregrinos que ali se deslocavam a pé para Fátima.

Na maioria dos comentários que se disseram ou escreveram sobre este desastre, apontou-se, como de costume, o dedo às vítimas: que “irresponsabilidade”, andarem a pé, à noite, numa estrada onde os automobilistas circulam frequentemente a velocidades elevadas! Contrastando flagrantemente com a raridade de comentários de censura ao automobilista que se despistou e que matou cinco pessoas.

Pior é quando a GNR, que tem especiais responsabilidades na matéria, decide proferir declarações públicas e, quando se esperaria uma intervenção pedagógica dirigida aos condutores (numa altura, aliás, em que andam milhares de pessoas a pé nas estradas, em direção a Fátima), a reação é antes aconselhar os peregrinos a não utilizar a estrada onde ocorreu este atropelamento, mas antes estradas secundárias. Como se o erro tivesse sido das vítimas. Ignorando até que o risco pode ser maior em estradas secundárias, sem bermas para as pessoas circularem, e onde, portanto, os peões têm de circular na faixa de rodagem. E ignorando, claro, que estes atropelamentos também acontecem nas estradas secundárias. Porventura em maior número.

Não fosse o que se dirá no parágrafo seguinte, conselhos de segurança dirigidos aos peregrinos até nem chocariam tanto se o essencial da reação da GNR se tivesse centrado nos cuidados a observar pelos condutores. Mas sobre estes, apenas silêncio.

A intervenção da GNR é duplamente infeliz. Porque neste caso os peregrinos estavam a caminhar por uma faixa de rodagem que estava interdita ao trânsito automóvel e reservada à circulação de peregrinos e, como se disse, separada por pinos da faixa de rodagem por onde circulava o carro.

Contrariamente ao que muitos automobilistas parecem pensar, as estradas não são um feudo exclusivo dos veículos automóveis. As pessoas podem circular a pé na estrada, tenha ou não berma (a maioria não tem), e são muitas as que o fazem, pelo mais variado tipo de motivos, pessoais, profissionais ou outros.

As estradas interditas ao trânsito de peões são uma exceção e estão devidamente sinalizadas. Nas restantes estradas (a esmagadora maioria), os condutores têm de adequar a sua condução e a sua velocidade tendo em conta que nelas podem encontrar peões a circular. É isto que o comum dos automobilistas portugueses parece não conseguir compreender. Basta observar como se conduz nas nossas estradas (ex. numa lomba ou curva de visibilidade reduzida), e a velocidade a que se conduz, para se perceber que a possível presença de peões a circular na estrada não é coisa que se tenha minimamente em conta na condução.

E quando acontece um atropelamento grave, o peão foi “irresponsável”. Devia ter escolhido outra estrada. Ou ficado em casa. Haja decência!


P.S. Em países onde se leva a segurança rodoviária muito mais a sério, este condutor teria visto a sua carta de condução imediatamente apreendida (até decisão preliminar de um juiz sobre a medida cautelar a aplicar relativamente à condução de veículos).
(aditamento em 4/5/2015: o juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra determinou hoje as medidas de coação aplicadas ao condutor, que ficará, por enquanto, inibido de conduzir. Uma decisão rara e de aplaudir!) 
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3 comentários:

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  3. Boa noite, concordo com a sua opinião e não quero de forma nenhuma contradize-lo com o meu comentário contudo com toda a mediatização deste caso algumas verdades acabam por ficar distorcidas e pouco perceptíveis a meu ver...
    No seu texto diz por exemplo que "neste caso os peregrinos estavam a caminhar por uma faixa de rodagem que estava interdita ao trânsito automóvel e reservada à circulação de peregrinos", facto que por acaso ainda não conhecia, mas que me causa alguma confusão porque não percebo como é que foi criada sequer uma faixa de rodagem só para peregrinos num Itinerário Complementar que por definição, por exemplo pela velocidade elevada a que permitem circular, não permite a circulação de peões.
    Às vezes fico a pensar que mais uma vez neste país se faz tudo e mais alguma coisa pelos valores de sempre (e desculpem a generalização mas esses são: Fatima, Fado e Futebol) sem se pensar muito bem nas consequências... E repare- se que na minha opinião pela observação dos factos conhecidos as vitimas aqui serão de facto os peregrinos, já que seguiam numa faixa que lhes era reservada e nunca o condutor do automóvel mas olhando para a "pintura" geral parece me que nem sequer devia era existir naquele itenerario uma faixa reservada a peões, precisamente pela proximidade a que sujeita esses peões a carros que podem circular a velocidades bastante elevadas e pelo perigo que isso só por si proporciona.
    Parece-me é que na segurança rodoviária, como em muita outras areas, se fazem as coisas para "desenrascar", para servir quem interessa na hora sem se perder muito tempo para pensar nas coisas e sem se pensar bem nas consequências e parece-me mais ainda que, depois, toda a gente se preocupa demais em encontrar vitimas e culpados mas ninguém quer saber quem afinal são os responsáveis...
    Peço desculpa pelo que afinal, ficou a jeito de desabafo...
    Stephane Bessa

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