14.9.14

Silêncio, essa batalha perdida

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«1. 3h45 da manhã, pulei da cama, vesti-me e saí pelas ruas da cidade alentejana onde moro, em busca do apocalipse. Íamos na sexta noite de apocalipse, havia que identificar-lhe a origem, isolá-lo. As portas estavam fechadas, as janelas às escuras, o casario tão imóvel como sempre, sobretudo numa noite de segunda para terça, mas por cima de tudo ribombava aquele DJ. Era uma trip de Kafka com Festival Boom, eu subia em direcção ao Castelo e o som parecia vir do Castelo, eu descia na direcção da Praça de Touros e o som parecia vir da Praça de Touros. O mais estranho era que só eu parecia acordada, não restava vivalma, nem o relance de um gato. Porém, o alcance em watts não mentia: alguém colocara um DJ no lugar de deus, apesar de a câmara ser comunista. Um deus omnisciente, como é próprio dos deuses e dos narradores, que se incrustam em qualquer cérebro às 3h45 da manhã. 
2. Isto do narrador deve ser porque fui colonizada há umas semanas por uma narradora tripeira, sem travas na língua. E foi certamente tomada pela minha personagem que dobrei a esquina e irrompi pelo posto da guarda local, decidida a, no mínimo, prender o guarda tranquilamente sentado no seu posto. Como tranquilamente sentado no seu posto se um DJ ribombava por cima de nós às 3h55 da manhã? 
3. Primeiro o guarda, depois um seu camarada, ambos mantendo assinalável calma perante a narradora, esclareceram que se tratava da Feira, aliás, da discoteca ao ar livre que se segue à Feira, sendo que a Feira é anual, eu não sabia? Ou seja, tudo certificado, e anualmente certificado, autorização camarária para discoteca ao ar livre até às 4h da manhã, desde a quarta-feira anterior até esta madrugada. 
4. Derrotada, voltei para a cama, onde ainda ouvi uma sequência de tourada, hit de pop britânica e faduncho brejeiro. Às 4h15, da manhã o DJ fechou o céu e o silêncio desceu sobre a gente de boa-vontade. Mas como não consegui voltar a adormecer até às 6h, resolvi dar um google na Feira.
5. Li então no site da câmara que se tratava de uma “manifestação económica, cultural, social”, a “nível local, regional e mesmo nacional”, “propiciando oportunidades únicas para a troca de contactos e futura realização de negócios, mas também um ponto de encontro”. Incluía uma “exposição de gado de grande qualidade”, “o espaço artesanato, a feira do livro, o espaço Brincafeira, animação de rua, concurso de mel, exposição de pássaros exóticos, jornadas columbófilas”, o “espaço Tasquinhas”, “shoowcookings”, “workshops”, a exposição “40 anos do 25 de Abril e o Poder Local Democrático” e espectáculos com “alguns dos grandes nomes do panorama musical nacional”. Tudo isto “ao encontro de diferentes faixas etárias, interesses culturais, gostos e características da nossa região em geral e do concelho em particular”. E, “numa época de tantas e tão grandes restrições que todos somos obrigados a fazer”, sem qualquer custo para os cidadãos.
6. Os meus respeitos e a minha gratidão, sou apenas uma forasteira que ainda espera retribuir seis meses de paz alentejana quando sair da toca, toda a força aos democratas locais, às ovelhas que comem ervinha, às abelhas no rosmaninho, aos concertos de quem vem tocar. Só não entendo o que têm todos eles a ver com uma discoteca a céu aberto até às 4h da manhã. 
7. Passei de morar no Rio de Janeiro para morar no Alentejo. O Rio é uma cidade mega-ruidosa, no asfalto como no morro, do escape dos autocarros aos bailes funks, ou seja, desde o descaso dos poderes públicos à imposição dos poderes paralelos, que resulta do descaso dos poderes públicos. Silêncio no Rio, como em todas as cidades com desequilíbrios sociais abruptos, é uma distinção dos afortunados, um luxo. Tal como favela, antes do mais, é ruído, o ruído de quando tudo é precário, do tecto de zinco à paz, incluindo a paz de espírito. Aterrar no Alentejo depois disto é mais ou menos como às 4h15 da manhã o DJ finalmente deixar dormir a gente de boa-vontade. 
8. Porque a gente, em geral, em Portugal, tem boa-vontade. Os cafés, em geral, têm música, muitas vezes alta e ninguém parece incomodar-se. Idem para a música nos centros comerciais, nas lojas, nas ruas, nos táxis, nos elevadores, nas esperas dos call centers, nos expressos da rodoviária. 
9. Paremos o filme nos expressos da rodoviária. Não sou obrigada a entrar num café com música, tenho alternativas (embora de momento não me ocorram). Mas, para quem não conduz e usa transportes públicos, os transportes públicos não têm grande alternativa a si próprios. Se quero ir para Lisboa de onde moro, apanho um expresso na rodoviária, e aí o meu único bem essencial, aquele que não posso mesmo esquecer em casa, é um par de auscultadores. Porque os expressos, pelo menos os da linha que percorro, têm uma tendência para propagar a RFM.
10. O coreto da cidade onde moro, por seu turno, propaga uma rádio creio que local. É uma espécie de posto avançado, sempre no meio do jardim, pronto para colher o pedestre desprevenido. A rádio mora no meu barracão diria Clementina de Jesus, fiz rádio durante anos, e, talvez por isso mesmo, rádio num altifalante soa-me a devassa, como alguém amplificar uma coisa íntima, feita de um para um. Mas não é exclusivo desta cidade, e portanto pouco importa qual cidade. Como dizem os donos dos restaurantes locais, imagino que com toda a propriedade, se a televisão não está ligada, os clientes queixam-se. 
11. A verdade é que não só ninguém parece incomodar-se com o ruído de fundo como as pessoas parecem incomodar-se com a ausência de um ruído de fundo. Ao ponto de haver quem ainda ouça a sua própria música sem auscultadores por cima da música dos altifalantes, duas camadas de poluição para o vizinho do lado. Ora, já que não obrigo ninguém a ouvir a Clementina de Jesus, parece-me próximo do totalitário que alguém me obrigue a ouvir a Miley Cirus, enfim, próximo do totalitário que alguém ache que pode obrigar alguém a ouvir seja que música for.
12. A vida já é ruidosa com tudo o que nela é ruído não tecnológico desde o início dos tempos. Entretanto, temos, com actos e pactos mais ou menos reguladores, as britadeiras, as escavadoras, os motores, os ventiladores, os geradores, os televisores, os telefones que nunca estão no silêncio. Ainda assim, em raros momentos, um pensamento subitamente atravessa do nosso lobo occipital para o nosso lobo parietal, como uma pequena raposa. Portanto, para não nos afundarmos naquela prostração tão característica de quem pensa, alguém põe música por cima do nosso cérebro.
13. O futuro é ruído. Desisti de morar na minha casa em Lisboa há anos, não só mas também quando perdi a batalha com o progresso sonoro em volta. Com tudo isto, e como gosto demasiado de música para ler enquanto ouço, ler tornou-se uma estranha actividade clandestina».
Alexandra Lucas Coelho, no Público de hoje

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