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«1. 3h45 da manhã,
pulei da cama, vesti-me e saí pelas ruas da cidade alentejana onde moro, em
busca do apocalipse. Íamos na sexta noite de apocalipse, havia que
identificar-lhe a origem, isolá-lo. As portas estavam fechadas, as janelas às
escuras, o casario tão imóvel como sempre, sobretudo numa noite de segunda para
terça, mas por cima de tudo ribombava aquele DJ. Era uma trip de Kafka com Festival Boom, eu subia em direcção ao Castelo e o
som parecia vir do Castelo, eu descia na direcção da Praça de Touros e o som
parecia vir da Praça de Touros. O mais estranho era que só eu parecia acordada,
não restava vivalma, nem o relance de um gato. Porém, o alcance em watts não
mentia: alguém colocara um DJ no lugar de deus, apesar de a câmara ser
comunista. Um deus omnisciente, como é próprio dos deuses e dos narradores, que
se incrustam em qualquer cérebro às 3h45 da manhã.
2. Isto do narrador deve ser porque fui colonizada há umas
semanas por uma narradora tripeira, sem travas na língua. E foi certamente
tomada pela minha personagem que dobrei a esquina e irrompi pelo posto da
guarda local, decidida a, no mínimo, prender o guarda tranquilamente sentado no
seu posto. Como tranquilamente sentado no seu posto se um DJ ribombava por cima
de nós às 3h55 da manhã?
3. Primeiro o guarda, depois um seu camarada, ambos mantendo
assinalável calma perante a narradora, esclareceram que se tratava da Feira,
aliás, da discoteca ao ar livre que se segue à Feira, sendo que a Feira é
anual, eu não sabia? Ou seja, tudo certificado, e anualmente certificado,
autorização camarária para discoteca ao ar livre até às 4h da manhã, desde a
quarta-feira anterior até esta madrugada.
4. Derrotada, voltei para a cama, onde ainda ouvi uma sequência
de tourada, hit de pop britânica e faduncho brejeiro.
Às 4h15, da manhã o DJ fechou o céu e o silêncio desceu sobre a gente de
boa-vontade. Mas como não consegui voltar a adormecer até às 6h, resolvi dar um
google na Feira.
5. Li então no site da câmara que se tratava de uma
“manifestação económica, cultural, social”, a “nível local, regional e mesmo
nacional”, “propiciando oportunidades únicas para a troca de contactos e futura
realização de negócios, mas também um ponto de encontro”. Incluía uma
“exposição de gado de grande qualidade”, “o espaço artesanato, a feira do
livro, o espaço Brincafeira, animação de rua, concurso de mel, exposição de
pássaros exóticos, jornadas columbófilas”, o “espaço Tasquinhas”,
“shoowcookings”, “workshops”, a exposição “40 anos do 25 de Abril e o Poder
Local Democrático” e espectáculos com “alguns dos grandes nomes do panorama
musical nacional”. Tudo isto “ao encontro de diferentes faixas etárias,
interesses culturais, gostos e características da nossa região em geral e do
concelho em particular”. E, “numa época de tantas e tão grandes restrições que
todos somos obrigados a fazer”, sem qualquer custo para os cidadãos.
6. Os meus respeitos e a minha gratidão, sou apenas uma
forasteira que ainda espera retribuir seis meses de paz alentejana quando sair
da toca, toda a força aos democratas locais, às ovelhas que comem ervinha, às
abelhas no rosmaninho, aos concertos de quem vem tocar. Só não entendo o que
têm todos eles a ver com uma discoteca a céu aberto até às 4h da manhã.
7. Passei de morar no Rio de Janeiro para morar no Alentejo. O
Rio é uma cidade mega-ruidosa, no asfalto como no morro, do escape dos
autocarros aos bailes funks, ou seja, desde o descaso dos poderes públicos à
imposição dos poderes paralelos, que resulta do descaso dos poderes públicos.
Silêncio no Rio, como em todas as cidades com desequilíbrios sociais abruptos,
é uma distinção dos afortunados, um luxo. Tal como favela, antes do mais, é
ruído, o ruído de quando tudo é precário, do tecto de zinco à paz, incluindo a
paz de espírito. Aterrar no Alentejo depois disto é mais ou menos como às 4h15
da manhã o DJ finalmente deixar dormir a gente de boa-vontade.
8. Porque a gente, em geral, em Portugal, tem boa-vontade. Os
cafés, em geral, têm música, muitas vezes alta e ninguém parece incomodar-se.
Idem para a música nos centros comerciais, nas lojas, nas ruas, nos táxis, nos
elevadores, nas esperas dos call centers, nos expressos
da rodoviária.
9. Paremos o filme nos expressos da rodoviária. Não sou obrigada
a entrar num café com música, tenho alternativas (embora de momento não me
ocorram). Mas, para quem não conduz e usa transportes públicos, os transportes
públicos não têm grande alternativa a si próprios. Se quero ir para Lisboa de
onde moro, apanho um expresso na rodoviária, e aí o meu único bem essencial,
aquele que não posso mesmo esquecer em casa, é um par de auscultadores. Porque
os expressos, pelo menos os da linha que percorro, têm uma tendência para
propagar a RFM.
10. O coreto da cidade onde moro, por seu turno, propaga uma
rádio creio que local. É uma espécie de posto avançado, sempre no meio do
jardim, pronto para colher o pedestre desprevenido. A rádio mora no meu
barracão diria Clementina de Jesus, fiz rádio durante anos, e, talvez por isso
mesmo, rádio num altifalante soa-me a devassa, como alguém amplificar uma coisa
íntima, feita de um para um. Mas não é exclusivo desta cidade, e portanto pouco
importa qual cidade. Como dizem os donos dos restaurantes locais, imagino que
com toda a propriedade, se a televisão não está ligada, os clientes
queixam-se.
11. A verdade é que não só ninguém parece incomodar-se com o
ruído de fundo como as pessoas parecem incomodar-se com a ausência de um ruído
de fundo. Ao ponto de haver quem ainda ouça a sua própria música sem
auscultadores por cima da música dos altifalantes, duas camadas de poluição
para o vizinho do lado. Ora, já que não obrigo ninguém a ouvir a Clementina de Jesus,
parece-me próximo do totalitário que alguém me obrigue a ouvir a Miley Cirus,
enfim, próximo do totalitário que alguém ache que pode obrigar alguém a ouvir
seja que música for.
12. A vida já é ruidosa com tudo o que nela é ruído não
tecnológico desde o início dos tempos. Entretanto, temos, com actos e pactos
mais ou menos reguladores, as britadeiras, as escavadoras, os motores, os
ventiladores, os geradores, os televisores, os telefones que nunca estão no
silêncio. Ainda assim, em raros momentos, um pensamento subitamente atravessa
do nosso lobo occipital para o nosso lobo parietal, como uma pequena raposa.
Portanto, para não nos afundarmos naquela prostração tão característica de quem
pensa, alguém põe música por cima do nosso cérebro.
13. O futuro é ruído. Desisti de morar na minha casa em Lisboa
há anos, não só mas também quando perdi a batalha com o progresso sonoro em
volta. Com tudo isto, e como gosto demasiado de música para ler enquanto ouço,
ler tornou-se uma estranha actividade clandestina».
Alexandra Lucas
Coelho, no Público de hoje
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