24.11.13

Os artistas e os engenheiros da mentira

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«Quando lemos a entrevista de José Sócrates feita pela Clara Ferreira Alves percebemos que a mentira de ontem e de hoje, a dos sucessivos governos passados e, no mais alto grau (certamente porque a mentira em curso nos fere e escandaliza mais do que aquela já revogada), a do governo em funções, cobre a textura inteira do real. Percebemos claramente que o paradigma totalitário é o nomos da democracia e o seu coração mais secreto, no uso que os governos fazem hoje da mentira, quer como meio para reescrever incessantemente a história, quer como instrumento para alcançar os objetivos políticos.
Evitemos a indignação moral, que comporta quase sempre uma grande dose de ingenuidade e esquece - também ela, muitas vezes, falaciosamente - que a mentira sempre foi considerada como um utensílio necessário e legítimo da profissão política. Sobre isto, escreveu Hannah Arendt um ensaio intitulado Verdade e Política, onde lemos logo de início esta observação: "Não é motivo de dúvida para ninguém que a verdade e a política não se dão bem uma com a outra, e ninguém, que eu saiba, jamais contou com a boa-fé no número das virtudes políticas."
Há um nível da mentira que consiste na falsificação deliberada do que diz respeito a uma realidade contingente, isto é, a uma matéria - eminentemente política - que não é portadora de uma verdade intrínseca (é sobretudo a esta mentira que se refere Hannah Arendt, nesse ensaio). Mas há um teor de mentira (já que existe a noção de "teor de verdade", porque não forjar a noção de "teor de mentira"?) que só tem a confiança de um poder totalitário. E é a esse nível que já chegámos, aqui e agora. Não se trata do conflito entre a verdade e a política que diz respeito à verdade racional, em que a chamada "opinião" desempenha um papel importante (e fácil é perceber que o comentário político, sobretudo quando entregue a políticos de profissão, é um lugar de irradiação da mentira política). Trata-se da mentira vulgar e grosseira quanto à realidade de facto. Aqui, já não estamos no reino da opinião, no triunfo da ilusão, mais do que da falsidade. Os opinadores e comentadores são os sofistas do nosso tempo, jamais entram em conflito com a razão, a não ser por inabilidade argumentativa. A mentira vulgar e a falsidade deliberada que se tornaram o instrumento fundamental da governação ao mais alto nível (dantes, quando era preciso descer a este nível, a tarefa cabia a funcionários não situados no topo da hierarquia) copiam em todos os aspetos a mentira totalitária: negando deliberadamente a realidade e modificando falaciosamente os factos. Daqui procede a necessidade de degradar, perverter e corromper a língua, de recorrer à fraseologia do "choque de expectativas" e das "condições de recurso", exemplos recentes da nova linguagem em curso. E quem recusa o compromisso da verdade, implicado na linguagem, compromete-se com uma traição. A convicção de que assim é levou uma escritora como Ingeborg Bachmann a formular deste modo um imperativo poético: "Devemos dizer frases verdadeiras." A importância da linguagem na génese do mal é uma lição fundamental do fascismo e de todos os poderes totalitários. O cada vez mais actual Karl Kraus, com a consciência apocalíptica de que estava confrontado com os últimos dias da humanidade, escreveu uma vez este aforismo: "Há artistas da mentira e há engenheiros da mentira. Aqueles agem perigosamente sobre a imaginação; estes já a esgotaram antecipadamente”.»
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Artigo de António Guerreiro publicado no Ípsilon, Outubro de 2013

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