4.11.13

Horário de trabalho: no caminho de regresso ao séc. XIX

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Artigo 24.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem:
«Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas».
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No mundo laboral, o que separou o século XX do século XIX foi a diferença entre uma relação contratual de trabalho e uma relação de servidão.
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No início do século XIX, os trabalhadores eram obrigados a trabalhar 12, 14 ou mesmo 16 horas por dia. O movimento em defesa das 8 horas de trabalho (sob o lema “8 horas de trabalho, 8 horas de tempo livre e 8 horas de repouso”) nasceu ainda nos primeiros anos de oitocentos, mas o direito à jornada máxima de 8 horas demoraria mais de um século a ser universalmente reconhecido. Esse reconhecimento não surgiu por iniciativa e especial benevolência dos governantes, mas à custa de muitas greves, de muita repressão policial, de muitas prisões, de muito sangue e de muitas mortes – com destaque para a célebre greve geral nos EUA e no Canadá pela jornada de 8 horas, iniciada em 1 de Maio de 1886, tão emblemática que o dia 1 de Maio haveria de se tornar no dia do trabalhador na maior parte dos países do mundo.
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Há vida para além do trabalho. Tem de haver vida para além do trabalho. Tempo para descansar, para estar com a família, para as refeições, para o lazer, tempo disponível, com um mínimo de previsibilidade. É uma condição indispensável à realização pessoal e a uma existência minimamente digna. Mas é também uma questão de saúde, porque o ciclo biológico impõe a necessidade de um período diário de recuperação do cansaço físico e intelectual que o trabalho provoca (1). E é, por isso, inclusivamente uma questão de produtividade laboral, e, logo, também do interesse objetivo do empregador: um trabalhador cansado ou doente produz menos e é muito mais permeável ao erro.

(O dono do império automóvel Henry Ford era um defensor da diminuição do tempo diário de trabalho, que voluntariamente praticou nas suas fábricas, até porque, argumentava, sem tempo livre suficiente os trabalhadores não teriam tempo para consumir os bens e os serviços que as empresas produziam.)

Esta grande conquista civilizacional está a ser seriamente posta em causa.

O regime do trabalho extraordinário (que, não inocentemente, se passou a designar trabalho “suplementar” desde o tempo em que Cavaco Silva foi primeiro-ministro) foi concebido com base na ideia de que só excecionalmente o empregador pode obrigar o trabalhador a trabalhar para além do seu horário. O pagamento das horas extra com acréscimos de remuneração em relação ao valor/hora normal constitui uma garantia de que o que é excecional não se transformará em regra. O valor da hora de trabalho extraordinário deve ser suficientemente elevado para que funcione como fator inibidor do abuso do recurso a este instrumento.

Mas esses valores de acréscimo de remuneração foram, pela Lei n.º 23/2012, brutalmente reduzidos a metade, aproximando-os do valor/hora normal, numa alteração que visa facilitar o recurso, por parte do empregador, ao trabalho extraordinário, obrigando o trabalhador a trabalhar mais do que as 8 horas diárias ou em dias feriados ou em fins-de-semana. Esta alteração legal impôs-se mesmo sobre as cláusulas previstas nos contratos livremente celebrados entre os empregadores e os trabalhadores.

E como o trabalho extraordinário (ainda) é pago, têm sido criados alguns outros instrumentos de “flexibilidade”, que permitem, na prática, tornear a regra das 8 horas diárias de trabalho, mas sem que as horas extra sejam pagas, tudo sempre em nome das sacrossantas “exigências do mercado”. É o caso do horário concentrado, do regime da adaptabilidade e do regime do banco de horas. Em alguns dos casos, a aplicação do respetivo regime depende, em teoria, da aceitação do trabalhador, mas é bem sabido que, na prática, no grosso das situações a liberdade de recusa do trabalhador não passa de pura ficção (e mais ainda nos tempos que correm, em que à dependência económica do trabalhador se junta uma grande dificuldade em arranjar trabalho); nos outros casos (adaptabilidade grupal e banco de horas grupal), já se admite mesmo que o regime se aplique sem necessidade do acordo do trabalhador. Chegámos ao ponto de a lei permitir que o trabalhador seja obrigado a trabalhar 12 horas por dia ao longo de um período considerável de tempo (2). 12 horas por dia… Desconte-se as horas de sono, as horas despendidas em deslocações de e para o trabalho (há quem gaste 3 horas por dia), a levar os filhos à escola, o tempo das refeições, o tempo necessário para as tarefas domésticas… faça-se as contas… (e a lei permite que a estas 12 horas ainda acresçam 2 horas de trabalho extraordinário - agora pagas a preço reduzido).

Esta inacreditável regressão não se iniciou com o “programa de ajustamento” ou com uma imposição da troica: é bem anterior à troica e à crise e constitui simplesmente um efeito da onda neoliberal que se instalou no poder (por exemplo, a penúltima revisão do Código de Trabalho, aprovada em Janeiro de 2009 na Assembleia da República, resulta de um projeto legislativo que deu entrada no parlamento em meados de 2008, que por seu turno resultou de um processo de revisão iniciado em 2006, muito antes da troica).

Esta flexibilidade do horário de trabalho (que é um contrassenso num contexto de enorme taxa de desemprego) não vem responder a reais necessidades das empresas para as quais não existissem já mecanismos legais. O banco de horas, por exemplo, é um mecanismo concebido pretensamente para responder a um acréscimo de atividade da empresa ao longo de um período de tempo considerável; os contratos a prazo ou o trabalho temporário eram suscetíveis de suprir essas necessidades de acréscimo temporário de trabalho.

O objetivo é outro e é claro: é tão-só o de diminuir os custos do trabalho por parte do empregador. Essa finalidade é, aliás, flagrante no caso da diminuição para metade da remuneração do trabalho extraordinário.

Tal como no séc. XIX, para o empresário é mais barato ter 10 trabalhadores a trabalhar 60 horas por semana (12 horas por dia) do que ter 15 trabalhadores a trabalhar 40 horas por semana (8 horas por dia). Tal como no século XIX, o objetivo é garantir ao empresário uma poupança de custos de produção, à custa do trabalhador, que tende novamente a ser encarado, não como uma pessoa com vida para além do trabalho, mas como um simples fator de produção. Ainda há uma distância que nos separa do séc. XIX. Mas é preocupante constatar como tão rapidamente ela tem vindo a ser encurtada.

E o mais preocupante é que estamos a aceitar tudo isto quase sem um protesto, como se pouco ou nada prejudicasse as nossas vidas, como se este caminho de regresso à servidão constituísse uma inevitabilidade. Esta passividade ou resignação de hoje contrasta com a coragem de todos aqueles que, durante décadas, e em condições muito mais difíceis, lutaram até obter o reconhecimento legal do horário de trabalho de 8 horas.

Destacando-se da apatia geral, há alguns grupos de trabalhadores que, com toda a justiça, vão fazendo greves contra este grave retrocesso civilizacional. É o caso dos trabalhadores da CP, que não se conformam com a brutal diminuição do pagamento das horas extraordinárias - numa empresa mal dimensionada, que tem despedido trabalhadores mas recorre ao trabalho extraordinário como
sistema! - e que estão prestes a voltar às greves, segundo noticiou a semana passada o jornal Público (as greves da CP merecerão um artigo à parte). Haja alguém que não se conforme.


Notas:

(1) Estudos demonstraram, por exemplo, que trabalhar 10 ou 11 horas por dia aumenta muito significativamente o risco de doenças cardiovasculares.

(2) Na adaptabilidade e no banco de horas, prevê-se a possibilidade de o tempo de trabalho extra ser “compensado” por uma redução equivalente do tempo de trabalho no período seguinte; no final dos dois períodos, o trabalhador terá, em média, laborado 8 horas por dia. Mas médias são médias e só ilusoriamente se pode falar em “compensação”, porque nada pode compensar as consequências negativas de se trabalhar, por exemplo, 12 horas, dia após dia, durante um período considerável de tempo, tal como nada pode compensar a perda de encontro familiar daí decorrente (e mesmo no período em que o trabalhador trabalhar menos horas, a redução do tempo de trabalho não lhe permitirá, na normalidade dos casos, estar mais tempo com os outros membros da família, que manterão os seus horários normais). Por outro lado, contrariamente ao que se passa no caso da adaptabilidade (existente desde 2009), no banco de horas (instituído em 2012) já nem sequer se exige a observância de uma média de 8 horas de trabalho, pois em vez daquela “compensação” com um período de redução de trabalho (para assim se obter, no final, a média de 8 horas), pode antes haver lugar a uma simples “compensação” monetária; mas nesse caso as horas extra trabalhadas serão pagas pelo valor/hora normal, e não como trabalho extraordinário. Em tal caso, o resultado é, pois, claro: o trabalhador vê, durante um período considerável de tempo, ser simplesmente aumentado o seu horário de trabalho. Entre isto e o horário de trabalho de 10 ou 12 horas vigente na segunda metade do século XIX já só há uma diferença: a existência de um limite de horas por ano durante o qual o horário pode ser diariamente aumentado. Mas a evolução que temos tido e a fraca contestação a que temos assistido não auguram nada de bom no que diz respeito à manutenção desses limites nos níveis atuais (que já são bastante elevados). Aliás, os “instrumentos de flexibilização” que vão sendo sucessivamente criados, cada qual com os seus limites anuais de horas, já permitem, na prática, um aumento do horário de trabalho durante um considerável número de dias do ano. E subsiste sempre, para além deles, a hipótese do trabalho extraordinário - agora pago a um valor/hora substancialmente mais reduzido...         
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