25.1.13

«O Cônsul de Bordéus»: o filme que Aristides de Sousa Mendes não merecia / Mitos I

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Aristides de Sousa Mendes é um dos heróis portugueses do século XX. E merecia mais do que o filme («O Cônsul de Bordéus») que Francisco Manso e João Correa sobre ele fizeram*.
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É muito positivo que finalmente tenha surgido um filme sobre o gesto de Aristides de Sousa Mendes, sendo certo que ainda há muitos portugueses que o desconhecem. Esse mérito merece ser realçado. E o filme recomenda-se a quem nunca tenha ouvido falar deste herói português ou saiba muito pouco sobre aquilo que ele fez.
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Mas é pena que seja um filme tão pouco conseguido.
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Os factos retratados no filme remontam a Junho de 1940. Os nazis já tinham invadido grande parte da Europa, levando a uma fuga em massa de refugiados para França (grande parte deles judeus). Seguiu-se a invasão de França. A meio de Junho de 1940, Paris caiu. Os alemães foram ocupando o país, de Norte para Sul. A capital francesa foi transferida para Bordéus, para onde se dirigiram centenas de milhares de refugiados em condições miseráveis, sob os bombardeamentos das forças alemãs: muitos morreram ou perderam familiares no caminho. Em Bordéus, onde decorre grande parte do filme (na verdade, rodado em Viana do Castelo), acumulavam-se mais de meio milhão de refugiados em desespero, dormindo onde podiam, num cenário dantesco, alguns milhares dos quais nas imediações do consulado onde exercia funções o cônsul Aristides de Sousa Mendes. Em 19 de Junho, caíram as primeiras bombas alemãs sobre Bordéus e, à aproximação das tropas nazis, muitos refugiados, em pânico crescente, fugiram para junto da fronteira espanhola, nomeadamente para Bayonne, cidade basca para onde se dirigiu também Aristides de Sousa Mendes (que aí terá permanecido entre 21 e 26 de Junho) e onde decorre a segunda parte do filme. O filme não conseguiu transportar para o ecrã a situação absolutamente dramática e caótica que se vivia (os próprios enviados de Salazar ao País Basco para travar Aristides descreveriam, nos seus relatórios e telegramas a Salazar, um cenário de caos e de desespero).
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Outros fatores empobrecem o filme. Pormenores
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(por exemplo, os factos são relatados em analepse por um narrador-testemunha-presencial, mas em grande parte das cenas e dos diálogos o narrador não estava presente - incoerência nunca resolvida; os refugiados – que tinham feito longas e extenuantes viagens e dormiam no chão –, têm as roupas sempre impecavelmente limpas: neles nunca se nota uma pontinha de sujidade)
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e não só. Os diálogos são, por vezes, confrangedores; a imagem de Aristides de Sousa Mendes e os factos históricos, um pouco maltratados. Embora tenha pretendido contar a história de Aristides de Sousa Mendes, o filme não é um documentário: é um filme histórico, necessariamente ficcionado. Mas a parte ficcionada é, no filme, preenchida com inúmeras situações e diálogos inverosímeis. O argumento é pouco feliz.
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Mesmo nos factos históricos, o filme tem algumas falhas: há nele vários erros factuais, que são suscetíveis de dar um sentido diferente à ação de Aristides de Sousa Mendes. Aproveito a ocasião para fazer referência a um mito em torno da história de Aristides de Sousa Mendes:
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O mito dos três dias e das três noites
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Embora não se alongue nesse ponto (felizmente), o filme «Cônsul de Bordéus» acolhe um mito que, lamentavelmente, tem sido difundido como uma verdade histórica: a história de que, antes de decidir conceder indiscriminadamente vistos a todos os refugiados que lho solicitassem, Aristides de Sousa Mendes teria estado três dias e três noites recolhido na sua residência, sem dormir e sem comer, a refletir sobre a decisão a tomar. Esse momento é, no filme, precedido de cenas em que o cônsul afirma, com determinação, que não pode conceder vistos, por tal lhe ser proibido face à Circular n.º 14 emitida por Salazar. Isto corresponde à versão difundida em alguns documentários televisivos – mas indiscutivelmente falsa – de que até certo momento (meados de Junho de 1940) Aristides de Sousa Mendes resistiu à concessão de vistos, mas que face à aflição e à pressão crescente dos refugiados, teria decidido passar a concede-los daí em diante, depois de ter estado três dias e três noites a refletir – e subsequentemente, durante alguns dias, concederia vistos a milhares de pessoas.
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O gesto de Aristides de Sousa Mendes é suficientemente grande para dispensar tentativas de o engrandecer através de pseudofactos desmentidos pelos documentos históricos – e que, bem vistas as coisas, desvirtuam o gesto do cônsul: depois de três dias e três noites sem dormir e sem comer, bem se pode argumentar que Aristides de Sousa Mendes tomou a decisão de conceder vistos tomado por um estado de enorme fraqueza física e psicológica (não estaria em si), e, pior, que teve enormes dúvidas sobre se deveria ou não fazê-lo (pois doutra forma não precisaria de tanto tempo). Isso diminui a grandeza da sua ação.
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Para Aristides de Sousa Mendes, a questão nunca se terá colocado desse modo. Entre as razões humanitárias («salvar toda aquela gente», como escreveria meses mais tarde em sua defesa), por um lado, e o dever de obediência e a salvaguarda da sua própria carreira profissional, pelo outro lado, o cônsul já tinha, muito antes de Junho de 1940, tomado a sua opção.
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Aristides de Sousa Mendes começou a emitir vistos a refugiados judeus em Novembro de 1939, poucos dias depois de receber a célebre Circular n.º 14, que lho proibia sem autorização prévia de Salazar (até Junho de 1940, o cônsul irá solicitar as autorizações; mas estas nunca serão concedidas). Concedeu umas duas dezenas de vistos entre Novembro de 1939 e Abril de 1940. Desde Janeiro de 1940, foi várias vezes advertido por Salazar de que não poderia conceder mais vistos em violação da Circular n.º 14. No final de Abril de 1940, foi expressamente advertido de que, se continuasse a emitir vistos, lhe seria instaurado um processo disciplinar por desobediência.

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Pelo menos no final de Abril, Aristides de Sousa Mendes já não tinha, pois, quaisquer dúvidas de que lhe seria instaurado um processo disciplinar se continuasse a conceder vistos. Consciente disso, a partir de 17 de Maio,
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(data de mais um telegrama de Salazar aos postos diplomáticos, reafirmando a proibição da emissão de vistos sem a sua autorização; outras circulares, cada vez mais restritivas, se lhe seguiriam em Maio e em Junho)
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quando os refugiados começam a afluir a França em grande número, o cônsul passará a emitir vistos todos os dias, até 20 de Junho (e, a partir de dia 21, fá-lo-á em Bayonne, até ao dia em que, na sequência da intervenção de Salazar, a entrada em Espanha é fechada aos refugiados detentores de vistos do cônsul português). Excetuaram-se apenas os primeiros três domingos, até 9 de Junho, mas a partir daí, mesmo aos domingos Aristides de Sousa Mendes estava no consulado a emitir vistos. O número de vistos emitidos aumentou a partir de 17 de Junho, com a aproximação das tropas alemãs e o pânico crescente dos refugiados, altura em que Aristides de Sousa Mendes terá decidido conceder vistos indiscriminadamente a todos os que o solicitassem, sem cobrar emolumentos (e, a partir de certa altura, sem os registar no livro de vistos); mas decidiu-o, inequivocamente, sem necessitar de três dias e de três noites recolhido no quarto a refletir (não há interrupção na concessão de vistos).
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O gesto de Aristides de Sousa Mendes foi escondido e desprezado durante toda a ditadura e ignorado durante mais de dez anos depois do 25 de Abril, e só em 1986 (duas décadas depois das primeiras homenagens internacionais) foi iniciada a sua reabilitação em Portugal, pela mão do então Presidente da República Mário Soares. Desde então, decorreram quase 30 anos, mas a sua história continua a ser em parte mal contada e empolada.
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Não é preciso ir à Torre do Tombo para consultar o acervo documental relacionado com Aristides de Sousa Mendes: centenas de documentos estão disponíveis para consulta na internet, no Museu Virtual de Aristides de Sousa Mendes, aí se podendo consultar documentos interessantes, que ajudam a desfazer outros mitos
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(é falso, por exemplo, que, regressado a Portugal e expulso da carreira diplomática por Salazar, a Ordem dos Advogados lhe tenha recusado a entrega da cédula profissional de advogado e que esse facto o impediu de voltar a exercer advocacia)
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e ajudam a revelar, não apenas o crápula que foi Oliveira Salazar, mas também como estava ele rodeado de alguns escroques que em Junho de 1940 cantavam a «vitória» nazi e rotulavam as pessoas a quem Aristides de Sousa Mendes concedia vistos de «escória», gente «ignóbil» e outros qualificativos do género.
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O período da vida de Aristides de Sousa Mendes posterior ao regresso a Portugal em Junho de 1940 merece também ser recordado (o que este filme não fez), desde o acolhimento de refugiados na sua própria casa de Cabanas de Viriato (que hoje está vergonhosamente à beira da ruína) até morrer sem lar, doente, na miséria e na solidão, ostracizado pelo regime e esquecido por quase toda a gente. Salazar nunca perdoou Aristides de Sousa Mendes, mesmo depois de conhecidas em toda a sua extensão as inacreditáveis atrocidades cometidas pelos nazis e o plano de extermínio dos judeus. Pior: depois do fim da guerra, Salazar chegou ao ponto de arrogar-se publicamente o mérito do salvamento de milhares de refugiados judeus e do seu acolhimento em Portugal (e chegou mesmo a ser elogiado por isso em alguma imprensa internacional: só nos anos 60 é que os actos de Aristides de Sousa Mendes, praticados em desobediência a Salazar, começariam a ser conhecidos pelo mundo fora).
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Aristides de Sousa Mendes salvou muita gente. Só no livro do consulado português em Bordéus foram registados mais de 1200 passaportes visados. Mas note-se que um só passaporte dizia muitas vezes respeito a uma família. A partir de certa altura, muitos dos vistos concedidos nem sequer foram registados. Acrescem os muito numerosos vistos concedidos em Bayonne, primeiro pelo vice-cônsul sob as ordens de Aristides de Sousa Mendes, e depois, nos dias finais, pelo próprio Aristides de Sousa Mendes, de manhã à noite. A historiadora Irene Pimentel (vencedora do Prémio Pessoa 2007),  especialista no período do Estado Novo e autora do trabalho "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial", calcula, com base nas várias fontes históricas, entre 50 mil e 70 mil o número de refugiados judeus entrados em Portugal até 1945 (apenas «umas centenas» permaneceriam em Portugal), sendo que o grande grosso entrou no nosso país em 1940, e em particular no mês de Junho, o mês em que Aristides de Sousa Mendes concedeu mais vistos. Em relatórios e informações que a PIDE foi fazendo em Junho de 1940, relativamente à entrada de refugiados nas nossas fronteiras (também consultáveis na internet), é referido que quase todos os refugiados tinham vistos concedidos por Aristides de Sousa Mendes, e que havia vistos emitidos em simples papéis de identidade. O número total de pessoas salvas por Aristides de Sousa Mendes usualmente referido é de mais de 30 mil pessoas. Mas mesmo que tivessem sido apenas mil: como se registou numa das muitas homenagens feitas no estrangeiro ao cônsul português, «quem salva uma vida, salva a humanidade».
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* Só ontem vi o filme. Fui vê-lo ao final do dia à Assembleia da República, onde foi exibido, no salão nobre, em sessão aberta ao público, na presença de familiares de Aristides de Sousa Mendes e em comemoração do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 de Janeiro). 
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1 comentário:

  1. Obrigada por toda a informação prestada, e parabéns pelo trabalho.
    Que orgulho que eu tenho neste grande português. É indescritível o
    que sinto quando penso na sua bondade, coragem e determinação.

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