«Há uma enorme circulação de mentiras em curso, e há um
enorme sofrimento na maioria das pessoas comuns e uma perda coletiva da
esperança, em si mesmos, na sociedade, na democracia, no país. Esta é a crise
perfeita, como a tempestade perfeita.
(…)
O plano inclinado da pobreza e da miséria são particularmente
destrutivos. Não estamos numa parte do mundo onde se morra à fome, onde a vida
seja destruída por epidemias evitáveis, ou no limiar da subsistência. (…) Não é
a miséria africana, a violência urbana latino-americana, o espectro da pobreza
asiática do Bangladesh.
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Não é isso. É uma sociedade europeia, saída ainda há muito
pouco tempo de uma pobreza ancestral rural e de bairro de lata, da emigração e da
tuberculose, da mortalidade infantil e do analfabetismo, para um mínimo de
condições de vida, de esperança, de conforto urbano, de consumos
"espirituais", de posse de alguns bens materiais e de segurança e alguns
direitos precários. Tudo pouco acima do mínimo, com diminuição da pobreza,
criação de uma classe média, e também retorno de alguma riqueza. A
diferenciação social e a exclusão continuaram, mas foram colocadas num patamar
diferente.
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Foi tudo uma ilusão artificial, como agora nos dizem? Teve
aspetos ilusórios, expectativas excessivas, mas não foi uma ilusão, foi uma
melhoria. Não precisamos que nos venham dar lições morais com a parte da
ilusão, para nos arrancarem as melhorias, porque a melhoria de vida dos portugueses
deve ser defendida ao limite. O que conseguiram nos últimos anos foi feito com
muito esforço, já para não falar da obrigação de reparação do muito que se
devia ao homem comum, pobre e trabalhador, pela ideologia da santidade da "pobreza
honrada" dos últimos quarenta anos, que deixou uma pilha de ouro no banco
e uma população analfabeta e cujos filhos morriam no parto como tordos.
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A discussão em "economês" dos nossos dias faz-se
para legitimar o desprezo por estas melhorias, tidas como esbanjamento; pela
esperança das pessoas em não perder o pouco que conseguiram, tido por uma
reivindicação egoísta de direitos; a que se soma um efetivo desprezo pelo seu
sofrimento, tido como pieguice. Sempre achei que atribuir aos governantes que
têm de tomar medidas difíceis estados de alma de indiferença face às
dificuldades era excessivo, mas agora não tenho qualquer dúvida sobre a frieza
e a incompreensão com que olham para o sofrimento dos seus concidadãos.
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No meio disto tudo, acabou a esperança, ou seja, acabou o futuro.
Para várias gerações, em particular aquela que o desemprego de longa duração - um
eufemismo para não dizer eterno - marca com enorme violência, o futuro acabou.
Sabem, com um saber magoado mas certeiro, que a partir de agora é só caminhar
num plano inclinado sem fim, ou seja, até ao fim dos seus dias. O resultado é
não só uma vida devastadora no presente, onde tudo está a começar ou já
começou, e onde o amanhã é apenas o agravamento do dia de hoje. Estes homens e
mulheres estão sozinhos e também já perceberam que ninguém cuida deles. Estão
do lado torto de tudo, não são "jovens" e por isso nem sequer têm
direito ao discurso retórico sobre a juventude, são os restos vivos do
"esbanjamento" do passado, mesmo quando eram apenas operários
têxteis, metalúrgicos, empregadas de limpeza, secretárias, professores,
enfermeiros, funcionários públicos, encarregados de armazém, trolhas. Ao lado
deles, os jovens têm um futuro radioso, só que fora do país.
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Por tudo isto, as mentiras são insuportáveis, até porque as
pessoas comuns sabem a verdade. Toda a gente tem uma perceção realista da
situação, as pessoas sabem que não vão poder continuar como antes, sabem que as
dificuldades são inevitáveis, e sabem que medidas de autodefesa têm que tomar, com
as suas poupanças e com os seus gastos. Ninguém pode, a não ser por abuso,
tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão
difíceis, e que não podem esperar muito, sendo que este "ajustamento"
natural das pessoas já se deu há muito.
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Só que uma coisa é esta perceção e outra é validar políticas
cujo objetivo não é corrigir excessos, mas empobrecer estruturalmente o país,
para que ele possa fornecer mão-de-obra barata, e atirar para a caridade ou
para o estrangeiro os muitos milhões de portugueses que estão a mais neste
glorioso plano de "refundar" Portugal como um país estruturalmente pobre,
que talvez daqui a algumas décadas - a palavra surge com cada vez mais regularidade
nos discursos do poder - possa ficar um pouco menos pobre, se "trabalhar
muito" e "fizer o trabalho de casa". Será que os governantes não
percebem como isto é ofensivo?
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Daí as mentiras e a petulância. Um secretário de Estado
resumiu essa mentira entranhada quando afirmou no Parlamento que os portugueses
deviam estar felizes porque iam ter a devolução de um dos subsídios tirados,
porque o Governo cumpria, presume-se com alegria, a decisão do Tribunal
Constitucional. Aliás, ele apenas se excitou canhestramente com uma das muitas
mentiras circulantes cujo melhor exemplo é o Orçamento do Estado e as
sucessivas avaliações positivas da troika, peças de uma política cujos perigos
dois ou três dias depois vem o FMI enunciar. A verdadeira avaliação da troika é
essa, repete o que toda a gente está a dizer do Orçamento, antecipa o que vai
acontecer, mas "Tout va bien Madame la Marquise".
(…)
Os portugueses também já "ajustaram" os
governantes. "Miúdos", "garotos", como o povo manifestante
bem intui, percebendo a sua inexperiência da "vida", saídos da pior
escola, carreiristas e espertos, obcecados pela "imagem" mediática,
conhecedores de mil e um truques, tão vingativos como ignorantes, deslumbrados
pelo seu poder atual, subservientes face a todos os poderosos, e que incorporaram
um profetismo grandioso sobre "refundar" o país, que rapidamente se
torna numa luta pela própria sobrevivência política, custe o que custar. O
resto é expendable, no inglês técnico de que gostam (…)».
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José Pacheco Pereira, historiador, militante do PSD,
ex-deputado, Novembro de 2012.
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