23.11.11

Nova greve no Parlamento ou Independência e isenção dos funcionários parlamentares posta em causa pelo Governo

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Na última alínea de um dos últimos artigos da Proposta de Lei de Orçamento de Estado para 2012, com a epígrafe “norma revogatória”, consta, muito discretamente, a revogação da “Lei n.º 23/2011, de 20 de Maio”.
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Ao contrário do que sucede com muitos outros diplomas referenciados na proposta (ex. “Estatuto da Carreira Diplomática”), este só aparece identificado pelo número da Lei.
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Num país obcecado com números e défices e chocado com cortes e subida de impostos, os senhores governantes terão provavelmente pensado que ninguém daria por esta revogação cobardemente escondida.
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Mas deram. E esta é mais uma triste história da nossa democracia.
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Os governos mudam, mas o absurdo historial de instabilidade legislativa em que nos tornámos especialistas não pára. Este é apenas mais um exemplo. Estamos a falar de uma lei publicada e entrada em vigor no final de Maio de 2011. Menos de cinco meses depois, decide-se que deve ser revogada, sem que para o efeito tenha sido apresentada qualquer justificação (nada – absolutamente nada – sobre a revogação consta no Relatório que acompanhou a Proposta de Orçamento de Estado).
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Não é uma lei qualquer: trata-se nada mais, nada menos do que o Estatuto dos Funcionários Parlamentares, importante instrumento de garantia da independência e isenção dos funcionários da nossa “casa da democracia”, estatuto que foi aprovado há escassos meses no Parlamento, imagine-se, por unanimidade.
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O facto de esta norma revogatória aparecer na Lei do Orçamento de Estado, quando não tem rigorosamente nada a ver com o orçamento (não tem quaisquer implicações nas receitas e nas despesas do Estado) é algo que só estes pouco iluminados governantes saberão (?) explicar.
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A existência de um corpo autónomo de funcionários parlamentares, com um regime próprio, é tão importante que está consagrada na Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 181.º, sob a epígrafe “Funcionários e Especialistas ao Serviço da Assembleia”, determina que “os trabalhos da Assembleia e o das comissões serão coadjuvados por um corpo permanente de funcionários técnicos e administrativos (…) no número que o Presidente [do Parlamento] considerar necessário”.
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A especificidade do trabalho dos funcionários da Assembleia da República justifica a existência de um estatuto próprio, tal como, de resto, constitui a regra nos outros países da União Europeia.
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Não é, nomeadamente, difícil perceber como seria perigoso se os funcionários do Parlamento ficassem, ainda que indirectamente, subordinados ao Governo, como se de vulgares funcionários públicos se tratassem. Estamos a falar, por exemplo, de funcionários que todos os dias produzem pareceres técnicos sobre as iniciativas legislativas apresentadas pelos vários partidos políticos com assento no Parlamento ou sobre petições apresentadas pelos cidadãos. A isenção e a neutralidade política, a independência face às maiorias governativas são, como é fácil entender, características essenciais nestes funcionários.
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A autonomia do corpo de funcionários da Assembleia da República e a isenção dos trabalhadores que o compõem estão salvaguardadas pelo respectivo estatuto (cuja definição incumbe exclusivamente ao Parlamento), o tal cuja proposta de revogação o Governo apresentou – revogação que implicaria, designadamente, a sujeição dos funcionários do Parlamento ao regime da contratação pública estabelecido na Lei n.º 12-A/2008 para os funcionários do Estado dependentes do Governo.
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Quando um Governo pretende descaradamente imiscuir-se no regime dos funcionários parlamentares, como se fossem seus funcionários, é legítimo suspeitarmos das piores intenções.
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Foi isto, aliás, que motivou uma greve histórica dos funcionários parlamentares em 28 de Abril de 2010 (a primeira em 34 anos!), com uma adesão quase total e que paralisou todos os trabalhos parlamentares agendados para esse dia. O Governo era então outro, mas as intenções pareciam não ser muito diferentes, pois pretendia-se sujeitar os funcionários parlamentares à regra da contratação pública estabelecida na Lei n.º 12-A/2008. Foi, aliás, mais um triste e degradante episódio da democracia portuguesa: inicialmente, houve unanimidade dos partidos quanto à manutenção do vínculo de nomeação dos funcionários parlamentares. Mas à última da hora, o PS retirou a sua assinatura da proposta que a previa; e, na sequência disso, o PSD acabou por retirar também a sua (e aparentemente não ficaram com vergonha do que fizeram).
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A questão não era de somenos importância: com a sujeição dos funcionários parlamentares ao regime geral da Lei n.º 12-A/2008, estava, em última análise, aberta a porta à contratação de funcionários da simpatia da maioria, o que era bastante grave.
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O bom senso acabou por prevalecer, através da aprovação do Estatuto dos Funcionários Parlamentares. Que se tratava de uma questão de bom senso demonstra-o o facto de o Estatuto ter sido aprovado, sem reservas, por unanimidade dos partidos, da esquerda à direita – coisa não muito comum, como se sabe. De resto, o respectivo Projecto de Lei constituiu uma iniciativa legislativa de todos os partidos: PS, PSD, CDS, BE, PCP e PEV.
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Desde então não ocorreram quaisquer circunstâncias supervenientes que justificassem a revogação de uma lei que, insista-se, foi publicada e entrou em vigor há apenas cinco meses. A revogação pura e simples do Estatuto dos Funcionários Parlamentares também não implica qualquer poupança para os cofres do Estado, pelo que o argumento da crise económica também não é invocável.
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Por conseguinte, todas as suspeitas são legítimas, de que com esta revogação se pretendeu colocar em causa a independência e a isenção dos funcionários da Assembleia da República.
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Entretanto, os funcionários do Parlamento apresentaram um pré-aviso de greve, em reacção a esta inexplicável proposta de revogação de uma lei aprovada por unanimidade há poucos meses. Temendo uma nova paralisação do Parlamento precisamente na altura da aprovação do Orçamento de Estado para 2012, os partidos do Governo apressaram-se a propor a alteração da polémica norma revogatória, transformando-a numa norma que prevê a revisão do Estatuto dos Funcionários Parlamentares em 2012, no sentido de o adaptar ao regime geral dos funcionários do Estado (!!).
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Continua a não fazer o mínimo sentido uma norma deste teor numa lei de Orçamento de Estado; e continua a não fazer o mínimo sentido a revisão de uma lei cujo teor foi tão pacífico que sobre ela recaiu o acordo de todos os partidos políticos.
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Bom senso, integridade e fidelidade à palavra dada são atributos cada vez menos presentes em muitos dos nossos políticos e governantes. E é pena.
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Notícias:
Funcionários entregaram pré-aviso de greve (DN)
Funcionários parlamentares têm pré-aviso de greve em dia de votação do OE (Público)

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